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sexta-feira, 29 de março de 2013

"A MENINA" .......conto...gênero: fantástico





“A menina”
                                                  (suian moreira)
                  
                        O rapaz chamava-se Paulo, e passara a noite arrumando malas, agitado pela perspectiva da grande aventura que se avizinhava. Logo, a pequena caminhonete azul estaria parada a sua porta, iluminada pelos vagos contornos do amanhecer. Então partiria, dividindo os sonhos e as conquistas, com os amigos do “Arte em Cena”.

                        O itinerário inicial já estava traçado. Seguiriam direto para Goiânia, onde participariam do “Primeiro Festival de Teatro Amador” – e depois... depois iriam para onde o vento soprasse. A idéia era percorrer o maior número de cidades possíveis, levarem às praças, escolas e teatros, os grandes clássicos ou pelo menos, aqueles que pudessem ser adaptados às condições do grupo. E também, e porque não? Textos de vanguarda, politizados e desafiadores – para despertar a massa adormecida, o povo carneirinho, acostumado a dizer sim as misérias do capitalismo.

                        A avalanche de livros recomendados pelo partido insuflara-o a grandes ideais de desapego ao consumo e ao trabalho para o bem coletivo. Resgatar a humanidade através da arte – era seu intento. Ingenuamente convencido de que a arte tudo podia, e que homens e mulheres podiam ser transformados pelo poder das palavras inspiradas. Só muito mais tarde compreenderia que era preciso muito mais.



                                                *                *             *


                        Relanceou o olhar pelo quarto, entre a alegria e o alívio de renunciar às sensações do passado. Fixou o rosto hesitante na escrivaninha de carvalho, os pertences que deserdava: livros, anotações, retratos – o foco de luz destacando o terço que a mãe lhe entregara de véspera, com olhos vermelhos:

                         - Leva meu filho... Você pode precisar...

                        Teve o ímpeto de recusá-lo, mas ela estava parada junto à escada, pequena e magra, e ele se enterneceu.

                 Não sabia por que se detinha ao pegá-lo, as mãos num impulso indeciso entre levá-lo consigo ou fingir esquecê-lo, Afastava-se de casa por límpida opção, o amanhã era imaculado e fresco, hesitava contaminá-lo com o terço carregado de lembranças. As mãos crispadas da mãe num gesto sem forças, segurando as dele: pendendo as contas e o crucifixo de prata como um segredo. Preferia poupar-se, não o levaria: além de que a simbologia da religião era puro ópio. Para coagir o povo ao servilismo.

                        Mas num gesto brusco e inconsciente, guardou-o no bolso apertado do jeans.

                                        *                      *                       *

           Fechou a porta do quarto atrás de si, caminhando silenciosamente pelo corredor, bom estarem todos dormindo, já houvera despedidas demais.

                        Desceu as escadas que desaguavam na sala de estar, em cheiro úmido inundava os aposentos. No toucador, as flores enegrecidas denunciavam o odor nauseante. O rapaz estranhou as rosas colhidas ontem, tão frescas e vivas, corrompidas tão cedo. Mergulhadas na penumbra, a mobília sólida, a estante com os volumes gastos de sua infância, “A Ilha do Tesouro” encadernada em vermelho, um porta-retratos ao lado esquerdo, revelando o pai numa desastrada pescaria. Paulo sorriu ao lembra-se daquele dia – o pai reunira os filhos e os primos ainda garotos, a uma pescaria. 
O irmão caíra numa parte funda do rio ao pular de uma pedra para outra. O pai mergulhara de caniço em punho e óculos escuros para salvá-lo; e não bastasse o susto, os peixes debandaram com a gritaria das crianças, assanhadas pelo incidente. Ah, as pescarias! Sentiria saudades.

                     Da grande vidraça da sala, enxergava o jardim envolto em cálida luz. Mais adiante, o muro baixo e o portão de ferro deixavam à vista a rua deserta – povoada de suas brincadeiras de menino, pique-pega e baleado junto aos irmãos e vizinhos, em horas intermináveis. Mais tarde, a puberdade chegada, eram as cantorias ao violão – Clarinha e sua voz estridente cantando para ele. Os irmãos o cutucavam cínicos, ele fingia nada perceber. Afogueado pelas emoções do primeiro amor não revelado, estremecia, remanchava, fazia-se difícil.

                  Depois vieram os bailes, Clarinha de salto alto, as pernas finas como macarrão – sempre a espreitá-lo.

                       - Essa menina não desiste? – perguntava o irmão.

Pena não ter se decidido, agora estava de partida e a saudade do beijo tantas vezes ensaiado, não se realizara. Clarinha revelou-se em beleza aguda como sua voz, os cabelos ruivos em farta tocha acesa.

                                         *                         *                             *

                 Abriu a vidraça e sorveu o ar gelado da madrugada só mais um pouco e tudo seria passado. Mediu a mochila estufada sob o volume das roupas e considerou se haveria reclamação. Reis, o diretor do “Arte em Cena”, instruíra-os a levar somente o necessário:

               -  Nada de exageros gente. Não temos espaço. Quem aparecer de bagagem de estrela, vai ficar “off-load”.

               Abaixou-se e retirou os sapatos lá de dentro, pronto, a mochila parecia menor. Não precisava mesmo deles, o tênis que usava era suficiente – retirou também o pijama e uma blusa de lã. Agora o volume era perfeito. Não ia bancar o filhinho de papai levando figurino extra. Duas mudas de roupa e a jaqueta de couro bastariam.

           Acendeu um cigarro baforando para a noite, e percebeu um vulto no jardim passar ligeiro. Alteou a cabeça curioso, apertou os olhos, seria algum cachorro vagabundo? Desviou o olhar para o portão: não, não entrara por ali, estava fechado. E se fosse um ladrão? Merda. Logo hoje. Iria atrapalhar tudo. Talvez fosse só impressão, espichou o pescoço atento e não viu nada. Voltava a cabeça para o olhar oposto, e novamente o vulto fugidio se esgueirou entre as sombras.

           Começou a ter medo, só podia ser um ladrão. Com essa onda de assaltos nas capitais – mais cedo ou mais tarde, os gatunos chegariam às cidades menores. Mas que falta de sorte, logo a sua casa ser escolhida para a inauguração! E logo hoje! 
         Nervoso, encolheu as mãos no bolso das calças, os dedos tocaram o terço esquecido ao fundo. Dedilhou-o com força, temeroso que o assalto frustrasse a sua partida; convencido que daí a pouco fosse rendido por um sujeito armado, como nos filmes. Numa prece muda e incrédula, rolou as contas do rosário enquanto repetia: 
      - Hoje não Deus, hoje não. Deixe que eu parta e cumpra meu destino. Quero ser ator, viajar por aí... não deixe esse Filho da Puta atrapalhar os meus planos.

                                        *                     *                    *

                  A claridade difusa dos primeiros raios de sol acendeu o jardim um pouco mais. Em vez do gatuno, vislumbrou uma criancinha vestida de forma incomum, surgida próxima ao jasmineiro – projetando-se como um sonho, de pé na folhagem.

                    O rapaz não acreditava no que via, sem dúvida o “vulto” era ela. Um sentimento de alívio o invadiu. Mas o que fazia uma menina assim tão pequena vagando na madrugada? Estaria perdida ou o que?

                  Pigarreou inquieto, iria chamá-la, quem sabe era sonâmbula? Já ouvira muitos casos de pessoas que andavam dormindo, saíam de suas camas em transe e caminhavam como zumbis.

             Calma. Não iria assustá-la. Chegaria de manso e falaria com ela, depois iria acordar a mãe para resolver a situação. Cada uma!

            Saiu em direção ao jardim, a figurinha infantil continuava parada em alheamento sereno. Era uma linda menina – considerou – e não se parecia com nenhuma criança que conhecesse. Neste momento se deu conta de que não era ninguém da vizinhança, a pequena sonâmbula devia ter andado bastante. Estava quase a alcançando, e foi então que como uma luz teatral vagarosa, baixando de tom até evanescer-se, a imagem da menina foi se apagando, apagando, até desaparecer completamente.
         Paulo estacou, olhando estupefato o espaço vazio à sua frente.

 Quase simultaneamente, a menina em seu longo vestido reapareceu na 

outra extremidade do jardim, os cachos distraídos balançando ao vento. 

O rapaz forçava-se a olhá-la, a boca seca, o coração batendo ôco num 

jato vívido de espanto.

                                     *                          *                          *

                  Lá estava ela brilhando no silêncio, alheia a qualquer presença no jardim, que não a sua. Olhava através do tempo como se buscasse calmamente por alguém, as mãos entrelaçadas e a pele muito clara davam-lhe um ar fantasmagórico. Um arrepio transpassou-o, tentou manter à custo um julgamento racional.

                       - Coisa estranha! – repetiu para si – O que será isso afinal?

         Estava estressado, só podia ser. Muitas emoções e acontecimentos inesperados nos últimos tempos. As provas na escola, o teatro e os ensaios constantes até tarde, a decisão de abandonar tudo. O desgaste junto à família e aos amigos que não se conformavam com sua partida.

                A cabeça começou a latejar, merda, poltergeist no meu quintal, só faltava essa! Vou entrar e tomar um café, ignorar esse delírio – será que estou maluco? Puta que pariu, ela está olhando na minha direção, será que pode me ver? Não, acho que não. Merda, merda, e agora, o que é que eu faço?

               A imagem se apagou por completo. Paulo sacudiu a cabeça, queria gritar, a voz sumida. Encostou-se ao muro ofegante, a pulsação disparada em pura adrenalina. “Será que é algum anjo da guarda”? Quis rir para enganar o medo, mas uma instintiva sensação dizia-lhe que não. Não parecia anjo da guarda, considerou, era muito ausente. Pesou o absurdo das próprias conclusões e desatou a rir o corpo trêmulo. To maluco, há há há, coisa estranha isso...

             Um ruído atrás, insistente, levou-o a outro susto. Virou-se pálido, e deparou-se com Daniel sussurrando irritado:

                     - Porra Paulo, ta dormindo em pé? A gente ta te chamando há um tempão!
                    - Hãh? Não ouvi. Cadê o carro?
              - Ta ali debaixo do poste, anda, vem logo. Tá todo mundo esperando.
                      Paulo puxou-o pela camisa:
                    -    Hãh escuta Daniel, você viu a menina que estava aqui?
                    -    Menina? Que menina?
                      Constrangido, disfarçou:
                    -    Nada. Era uma amiga do cursinho que veio se despedir...
               -    Acorda cedo ela , hein? – retrucou o amigo. Anda, cara, corre lá e pega sua mochila.



                                              *                *              *  

                          Agora, após tantos anos, essas lembranças pareciam vir de uma outra vida. O Jardim de sua casa, parecia-lhe um cenário de filme - revisto assim, enevoado , em sua memória    

                        O motor do velho ônibus rangia cadenciado, misturando a estrada irregular à paisagem igual de montanhas e vales. Uma sonolência boa invadiu-o por inteiro, puxou da mochila a jaqueta de couro (ainda bem que a trouxera), pois à medida que avançavam em direção à serra, o ar frio se compactava, e o vento fustigava as árvores lá fora, vacilantes em sua coreografia.

                Fechou a janela de um só golpe perscrutando o relógio, quanto tempo faltava para chegarem? Pelo cálculo rápido das pálpebras se fechando, umas duas horas. Daria um bom descanso.

              Graças a Deus era domingo, último dia de espetáculo da semana conturbada, um eterno abrir e fechar de malas, de uma pensão à outra, no circuito de cidadezinhas agendadas na pressa.

                   Então iria para casa, ufa! E teria três longos dias para dormir na própria cama, antes de recomeçar o ciclo infernal. Ônibus, correria, ensaios nas lanchonetes de beira de estrada, cochilos rápidos no trajeto, até chegarem ao destino. Geralmente teatros pequenos e decadentes de localidades mínimas. A trabalheira de instalar tudo, descarregar cenários e figurinos, trocar tomadas ineficazes para o som, testar a luz, fazer divulgação caso os contratantes fossem imbecis e não a tivessem feito. Geralmente eram.

              A platéia chegando, invadindo biombos para desnudar os atores nos camarins improvisados. O texto escorregando nervoso ao acender-se o palco, o público imprevisível, aplausos ou vaias. Nunca se sabia. Nesses quinze anos de atuação, já lhe acontecera de tudo – desde uma galinha que invadiu o palco e roubou-lhe a cena (coisa ridícula!), até o cenário desabado sobre ele, na hora mais contundente do texto. Ele improvisando, tentando disfarçar o indisfarçável, o povo às gargalhadas desconcertando-o no ato dramático. Ossos do ofício.

                              *                             *                              * 

          Mas a verdade, a grande verdade indizível, é que estava cansado. Um cansaço crônico se apoderara dele, trazendo consigo a vontade de ficar quieto, abandonar tudo, descartar aquele trâmite infindável de idas e vindas que não lhe davam mais prazer.

     Aos trinta e dois anos, sentia-se repentinamente um velho – fatigado e lento. Desejando apenas a paz de ler e assistir televisão, estirado ao sofá desbotado de seu quarto e sala.

     Há muito estava na estrada, interpretando ou fugindo? Sempre aos solavancos, descobrindo lugares que não tinha tempo para conhecer, comendo em botequins e estâncias, amando mulheres uma noite e nunca mais. Estava farto. Tinha impressão de que já vivera tudo.

   Queria uma vida estruturada, há há há, pensar que um dia ia ouvir isso de si mesmo! O estertor rebelde que fora, falastrão e libertário ainda no ginásio, enfrentando o pai paciente, exortando-o à faculdade de Jornalismo – e ele, no discurso inflamado, espada desembainhada “ vou ser ator ou nada”. Quanta bobagem! O pai deliberou, pediu-lhe tempo para refletir, ele irredutível – querendo ser pobre e sujo como os amigos que conhecera.

                        Achava linda aquela gente sem eira nem beira dando a vida pela arte, dançando pelas praças em farrapos coloridos. Teatro de Arena, o povo precisa de arte!

                     - O povo precisa acessar novos conceitos! – insistia exaltado repetindo a frase predileta do “diretor” do “ Arte em Cena”.

                        E desde então não fizera outra coisa em mais de uma década, senão declamar textos em tablados de todas as espécies. Circos mambembes, bares, teatros de todos os tipos.

            Mudando de trupe quando faltava trabalho, valia ter o que representar. E principalmente, ganhar algum para sobreviver.

                               
                                          *               *               *


                     As vozes dentro do ônibus ficavam cada vez mais distantes, aos poucos os companheiros aquietavam-se, deixando-se dominar pelo ritmo monocórdio da viagem. A maioria deles, tragados pela fadiga da rotina extenuante, dormitava.

                      A voz de Max vinha lá de trás lamurienta, tentando explicar ao diretor, a necessidade de contratarem mais um elemento para ajudá-lo:

                 - Não dá, Vicente! Atualmente já tenho que dar conta do cenário e figurino... todas as bombas acabam sempre explodindo na minha mão, problema atrás de problema! Depois que o “Batata” foi embora, até o som sobrou prá mim.

              A risada de Vicente veio acompanhada de um tom de voz sarcástico:

                 - E o que você sugere? A contratação de uma equipe técnica? Ora, pelo amor de Deus Max, você não enxerga que as coisas estão críticas? O país em crise, o patrocínio minguado, o grupo se fragmentando e você aí com essas crises de estrelismo...

                        Max enfureceu-se; ameaçando desertar:

             - Estrelismo eu? Um cara que de produtor virei “amarra cachorro”?  Então é assim? Acumulo mil funções nessa joça, trabalho feito um condenado e nem tenho direito de contratar um ajudante?

                        Vicente mais cauteloso interpelava-o conciliador:

                    -- Claro que tem Max... Não é disso que estou falando! Você é visceral para o grupo, todos sabem disso. E trabalha duro, como todo mundo – (deu ênfase à última frase, para que o reclamante se desse conta de que era ajudado por todos). Continuou:

                    -- A questão não é essa! Não temos dinheiro, Max, dinheiro!

Contratar mais alguém aumentaria a despesa. Teríamos que dividir a bilheteria com mais um. Todos teriam seu cachê reduzido...

            A esse ponto, a discussão interessava a todos. Os bolsos ameaçados reclamavam sonolentos, opiniões começaram a espocar de todas as partes do ônibus. Os atores e músicos sentados mais à frente, perguntavam o motivo do súbito falatório, e informados, vinham incorporar-se a ele – contestando a hipótese de ver diminuídos os parcos salários.

                                     *                        *                        *

                        Só Paulo permanecia indiferente. Irritado pelo barulho deflagrado pela inútil pendenga, abraçava-se mais a sua jaqueta, na esperança do término do conflito para voltar a dormir em paz. Merda. Sempre a confusão por causa de dinheiro. Que se matassem, não estava nem aí.

                        Os olhos fechados em abandono, o transportavam para o grande percurso de sua alma, revendo imagens distantes de sua infância e adolescência. Novamente o pai, vinha-lhe de pijamas, andando desgostoso pela casa, no dia antes de sua partida:

                      - Pense melhor, meu filho. Termine primeiro seus estudos, e depois faça o que lhe aprouver – e terá o meu apoio. Enquanto isso, você pode fazer um cursinho de teatro por aqui mesmo.

                  - Não adianta, pai. Quero viver na capital, viajar Brasil afora, me desapegar desse conforto burguês e provinciano...

                  A mãe, chorosa, não o deixara terminar o discurso:

               - Que loucura Paulo! Morar na capital como? Com que dinheiro, menino? Você vai estragar sua vida: essa gente que você quer acompanhar está cheia de boas intenções. Mas não tem um centavo no bolso. Não tem as oportunidades que você tem! Não seja burro, meu filho!  ...   “Não seja burro”, gritara-lhe a mãe histérica.

        E tinha razão. Desperdiçara os melhores anos de sua vida representando textos ruins, mal alimentado e mal ajambrado, num insidioso jogo de mentir para si mesmo.

            No começo, tinha orgulho ao intitular-se “alternativo ou maldito”. A espécie de arte que representava, marginalizada e itinerante, dava-lhe status de indomável. Para ele, era suficiente – desejava contestar o sistema mais que ser ator. Não distinguia em si, de forma especial, a vocação e o talento. Talvez, nem mesmo os possuísse.

         Revirou a mente em busca de uma grande atuação. Um trabalho qualquer em sua história, que fosse brilhante. Descartou todos, a maioria medíocre. Um ou dois papéis melhores mereceram algum elogio no meio – mas nada de grandioso, que o fizesse secretamente iluminado.

                                      *                            *                               *

                        Suspirou enojado de si mesmo, sentia-se uma fraude. Assaltava-o agora, o desejo de realização, de reconhecimento, prestígio. E mais que isso, estabilidade financeira. Morar num bom apartamento, comer bem, comprar um carro. Eliminar para sempre, a taquicardia habitual, ao constatar seus recursos insuficientes para o aluguel e outras despesas.

                        Certamente ele próprio era o grande culpado pelo fracasso de suas aspirações. Ressentia-se por seus planos naufragados, e, no entanto, deixara-se levar pela rotina ordinária sem jamais questioná-la. Mas ainda era possível retroceder, tentar de outra forma, quem sabe? Podia deixar  a trupe e mergulhar num projeto novo, instigante... Estudar textos mais consistentes, pesquisar e refletir sobre eles, dar um jeito de aliar-se aos “vencedores”

                        --Que metáfora careta! - reprovou-se. Parecia o pai, com a metódica divisão  do mundo entre perdedores e vencedores. Outra vez o pai. Incrível que aquela altura de sua vida, tudo convergisse para ele. Paulo surpreendia-se cada vez mais, repetindo suas frases, enternecendo-se com as lembranças de sua figura plácida. Sim, embora conservador, o pai sempre fora um sábio – em sua compreensão e equilíbrio. As mesmas qualidades que Paulo desprezara ao abandonar a casa. Na rebeldia de seus dezessete anos, tomara-o por acomodado e preconceituoso. Alienado às mudanças do mundo.

                        Percebia neste instante, que a resignação que o envolvia, não era distanciamento intelectual, nem discriminação pragmática. Era apenas o amadurecimento sofrido, de um homem que conquistara bravamente seu lugar neste mundo.

                 Reviu a história do pai, e pela primeira vez, considerou-o quase um herói. Tinha vindo do Líbano, fugido dos conflitos da guerra, ainda quase um menino. Lutara sozinho num país estranho, trabalhando como mascate – juntando o dinheiro suado à custa de sacrifícios e humilhações até abrir sua  primeira lojinha. Contava então vinte e nove anos. Paulo já era nascido, o caçula de três irmãos. O pai trabalhava duro, exalava paixão por tudo que realizava. Em pouco tempo era dono de mais duas lojas. Nunca chegaram a ser ricos, é verdade, mas nada nunca faltara a ele e aos irmãos – nem mesmo a sua presença amorosa e constante. Todas as noites após o jantar, o pai sentava-se próximo a eles em sua velha cadeira de balanço, contando aos filhos suas aventuras de refugiado e ouvindo-lhes também, as alegrias e queixas.



                                                  *                 *                  * 
        

                        O rapaz sentiu-se apaziguado por essas lembranças, dissolvido na certeza de ter sido feliz. Caminhava para si mesmo solidificando-se a cada confronto, palmilhando sentimentos há muito ignorados.

                        Tomou uma decisão firme: telefonaria ao pai ainda hoje. Não como de costume, de maneira casual e mentirosa. À custa de conservar sua autonomia replicante, fingia sempre o papel de vencedor. Por telefone, ou nas raras ocasiões em que visitava a família, impunha-se um ar de arrogância, de distraída prosperidade – como para justificar-se.

                        Não seria assim desta vez. Logo que chegasse ao hotel, após a apresentação desta noite, telefonaria ao pai de peito aberto. Falaria de seus temores e anseios, da desilusão e do cansaço. Da vontade que chegava de um projeto sólido.

                        Sim, o velho compreenderia, ia escutá-lo sem rancor ou mágoas. Como naquela história bíblica do filho pródigo. Paulo experimentou curtas visões onde abraçava os pais: iria visitá-los em breve – exposto, sem resistências.

                       Sem pudor, pediria à mãe que fizesse aquela carne assada com batatas que ele adorava. A velha ia morrer de felicidade em vê-lo feliz e desarmado, comendo atropeladamente reunido aos irmãos. Girou um pouco a lente interna e envergonhou-se da última vez em que fora vê-los. Comeu pouco e nem provou o bolo de mandioca – seu preferido, que a mãe fizera para esperá-lo. “Não posso engordar, mamãe, vivo da minha imagem” – arrotara ele presunçoso. Que grande calhorda! Que tipinho idiota tenho sido!

                        Ironizara o irmão mais velho, que trabalhava na loja de ferragem com o pai – chamando sua vida de “vidinha”.

                        -- Vocês precisam sair mais, participar da vida cultural do país. Ir à capital, tomar um banho de civilização, assistir peças e concertos - bradara o vaidoso.

           

                                              *                 *                *


                        O ônibus diminuía a marcha, Paulo saltava para a realidade lentamente, o corpo recostado à poltrona fruía inquieto , adivinhando próximo o momento de inteirar-se. “estamos chegando” a mente alertou-o. Um rumor de movimentos despertos emanava dos outros assentos, a voz do motorista elevou-se languidamente;

                                -Em dez minutos desembarcamos.

                        O burburinho no ônibus recomeçou, os companheiros recolhendo mochilas, vestindo casacos: as mulheres penteando os cabelos estremunhados, os lábios pálidos sendo cobertos de carmim. As conversas ressurgindo, tomara não viesse importuná-lo! Queria estar a sós ainda alguns minutos com seus pensamentos, deslizando na feliz concentração de ser ele mesmo.

                        Abriu os olhos em expectativa, lá fora uma ruazinha florida surgiu, pequenos prédios comerciais, e o estacionamento do hotel. Um colega mais agitado, já esperava no corredor do ônibus o momento de descer, quase em frente a ele:

                            -- Acorda Paulo! Sacode essa preguiça!

                                *                          *                      * 


                        Paulo espreguiçou-se, merda, tudo de novo. Passou a mão pelo rosto, vou ter que fazer a barba antes do espetáculo. Se der tempo. Olhou enraivecido o hotelzinho de terceira e ponderou: e se tiver água quente... Será? Levantou-se para desembarcar e o susto: nítida e ao mesmo tempo esmaecida, a menina sorria para ele. Branca e irreal como a vira tempos antes, a camisola longa de bordados antigos, reconheceu-a antes mesmo de raciocinar.

                                   *                        *                            *

                        Um grande oceano devastou-o como um estrondo. Paulo sentia-se naufragar lentamente, submerso num turbilhão incessante. Vagas imensas pulsavam em suas veias, a respiração entrecortada querendo vir à tona. Um suor frio molhava-lhe a testa, fitou a menina, sim, era ela. E desta vez o estava vendo, tinha nos lábios um sorriso familiar. O rapaz não se movia, acuado de pé no espaço contíguo ao assento, percebendo a realidade desenrolar-se a sua volta, como num pesadelo. 
            A menina de pé no corredor tão próxima que quase podia tocá-la, os colegas desembarcando, passando por ela sem enxergá-la, recolhendo seus pertences no ônibus, conversando animadamente.

              Sem dúvida estava lúcido. Cansado talvez, mas em seu juízo perfeito. Quem seria essa criança e o que queria com ele? A curiosidade foi emergindo, maior que o medo, mais profunda que o mar que há pouco o invadira. Quem era ela? O que fazia ali a olhá-lo?

           A menina adiantou-se serena, levantou o braço parecendo querer alcançá-lo. Então, como assustada, recolheu o gesto, estreitando as mãos ao peito. Paulo observou-lhe as mãozinhas finas e pequenas, e quase desejou segurá-las. Com firmeza ela recuou, afastando-se rápido, os pés descalços em direção à saída, “não vá ainda, lá fora está muito frio”... um  vago sentimento de ternura dominando-o.

           Viu-a sumir no próximo instante, estremeceu, levado pelo choque dos minutos vazios que a sucederam. Uma dor indefinida nascia em seu íntimo, sentia-se preso a uma estranha saudade, lembra-se da primeira noite em que a vira.

                                        *                       *                       *

                Começou a chorar, um choro quieto e tímido que escondia envergonhado, os olhos embotados fitando a tarde lá fora. Uma chuva fina se espalhava sobre as calçadas.

                 -- Não vai descer Paulo? Está se sentindo bem? – era a voz de Elza, a atriz mais velha do grupo.

             Quis dizer-lhe que fosse embora, cuidasse da própria vida. Merda. Porque não o deixavam em paz? Mas respeitava profundamente a companheira. Mulher batalhadora, já fora uma atriz famosa – mas havia envelhecido, engordado, então estava ali. Enxugou as lágrimas furtivas, esperou que ela se afastasse, mas ela insistiu:
            -- O que você tem Paulo? Estava chorando? – havia preocupação em sua voz.

            -- Tá tudo bem Elza... acho que peguei um resfriado – ouviu-se dizer. 

            A velha atriz puxou-o pelas mãos:  

         -- Venha vamos descer. Assim que entrarmos, vou lhe preparar um chá quente. Jesus, como você está pálido!



                                          *                    *                    *



                      A menina. Paulo não parava de pensar nela

                     Um desejo agudo de desvendar-se e ultrapassar a 

concentração que havia nela, a transparência clara do rosto infantil a 

fitá-lo. A expressão intocada de fresca humanidade a acalmá-lo, a 

guiá-lo, encorajando-o em sua busca ao passado. Como se fossem velhos

 conhecidos e trocassem a um só gesto, a saciedade e o abandono de 

uma cumplicidade indivisível ... A consciência íntima foi se abrindo alerta, 

na certeza da familiaridade da estranha visitante. 

                   Sim já a conhecia. Antes mesmo de tê-la visto pela primeira 

vez, antes mesmo de sua memória sequer existir, antes mesmo de 

expressar-se em pensamentos. Mas como? Quem era ela? Não conseguia 

se lembrar !  Um céu de possibilidades o devastaram, a menina deslizava 

num quase delírio – adivinhava-lhe a voz morna, o riso cálido, a sabedoria

 represada. Não era um sonho, nem esgotamento. Uma imagem 

inconsciente talvez, fragmentada de sua infância anterior às lembranças.

                                    *                         *                       *

                   Quem era a menina? Porque o visitava?

                     A indagação persistia, o enigma nascido há quinze anos em seu jardim, retornava intenso, perguntando-se como a esfinge “decifra-me ou te devoro”. Também daquela vez, quedara-se silencioso em inúmeras perguntas que ecoavam ôcas sem respostas. Pressentia por meio de esforço obstinado cumprir-se o desafio de sua própria existência. No que havia se tornado? O que pretendia para si?

                   Estranhamente – desde menino – via-se como um prisioneiro – nunca sabendo ao certo o que queria, sempre a angústia a espreitá-lo, o sentimento de inquietude, de vazio trancado. E embora o enigma da repetida visão lhe ocupasse a mente, sentia agora, que as grades haviam cedido.

                    Estava tomado de um súbito alívio, amoroso e desperto.

                Mas e esfinge? Como decifrá-la? Com quem compartilhá-la? Não ia recorrer à ansiedade, decidiu. Nem aos psiquiatras, nem a rezadeiras ou confissões constrangidas. Não diria a ninguém, a menina e seu mistério seria só dele, um dia então, enxergaria claro o cristal em sua essência.
                                            *                   *                        *
 

Naquele dia, depois do espetáculo, tomou uma longa ducha, e recolheu-se mais cedo. Os amigos insistiram que fosse com eles, jantar num restaurantezinho ali perto. Recusou a pretexto de estar gripado, comeria um sanduíche na cantina do hotel.

                                        *                               *                               *

                        Pediu a ligação , a voz da telefonista estava longe, parecia vir de outro planeta, a tecnologia ainda não chegou aqui, pensou. Mas estava bem-humorado. E esperou cordialmente a ligação ser completada. Um dos irmãos atendeu ao telefone, mal reconhecendo sua voz, mas assim que Paulo se identificou, abriu-se com extrema alegria, contando-lhe que a esposa estava grávida. Estavam todos reunidos por conta da novidade.

                   Conversaram durante longo tempo, com tal intimidade e desenvoltura que surpreendeu a ambos, o resto da família na fila, todos queriam falar-lhe. A mãe veio em seguida, a voz trêmula de saudades:

                       - Que coincidência meu filho! Falamos de você o dia inteiro, hoje jantaram todos aqui, só faltou você. Quis ligar, mas não tinha como localizá-lo!

                 - Escuta mamãe, vá se preparando para mais um lugar à mesa, amanhã chego aí... É... vou ficar três dias. Dá pra sair aquela carne assada? Não faço mais regime, perdi um pouco de peso, posso comer até estourar.

                       Não tinha planejado ir para lá logo no dia seguinte, a frase escapou-lhe de repente, mas já que tinha dito, iria de bom grado – estava quase eufórico pela súbita resolução.

                     O pai era puro contentamento. Repreendeu-o por ficar sem dar notícias tanto tempo, para desaguar em seguida, numa agitação quase infantil quando o rapaz anunciou a ida para casa.

                  - Venha, Paulinho, venha filho. Comprei um cachorro que é uma beleza, labrador, como você sempre quis... Que tal um churrasco, hein filho? Como nos velhos tempos... Iluminamos o quintal e carne na brasa! – o velho ria feliz – completou:

                     - Assim seus amigos aqui da cidade podem vir te ver.

               Paulo concordava com tudo, entusiasmado e repleto. Há quanto tempo não se sentia assim? Desligou o telefone e ficou cantarolando enquanto punha ordem nas coisas, ouvindo o tinir dos talheres da lanchonete ao lado. Resolveu sair e comer uns pastéis.          Queria conversar, tomar umas cervejas, estava animado.

                        *                             *                             *

                Sentou-se ao balcão, ao lado de um tipo bem rural – um homem alto de feições coradas, beirando aos cinqüenta anos. Começaram a falar do tempo, da vida no interior e da profissão de ambos.A certa altura da conversação, o homem interpelou-o:

                       - Volta amanhã para São Paulo?

                     - Não senhor, embarco para Minas. Pouso Alegre, conhece? Vou visitar meus pais, há muito tempo não os vejo.

                        O rosto do homem  se iluminou:

               --É mesmo? Pois acho que posso lhe arrumar uma carona! Tenho um amigo na Cooperativa, que segue justamente para Minas amanhã bem cedo. Vai fazer umas entregas.

                       Era muita sorte, o tal sujeito ia para uma cidade fronteiriça à sua, quarenta minutos ou menos de Pouso Alegre. Chegaria bem mais rápido e ia economizar a passagem do percurso mais longo.              Telefonaram dali mesmo pata acertar a carona. Paulo combinou estar às seis da manhã em frente ao posto de gasolina. Agradeceu repetidamente ao novo amigo e despediu-se, arrebatado por um contentamento sem limites. Tudo estava dando certo.
                        
                                      *                 *                   *


                        No dia seguinte, à hora combinada, Paulo viu Um velho furgão avançando devagar entre a neblina. O frio era intenso, as ruas dormiam amareladas, sob a fraca iluminação dos postes de eletricidade. O motorista, um homem grisalho de semblante aparvalhado, fez-lhe um rápido sinal convidando-o a entrar.

                         Paulo acomodou-se no banco contíguo ao velho, a cabine quente e espaçosa, esses furgões antigos eram mesmo uma beleza.

           Iniciaram o diálogo de praxe, cumprindo o ritual de apresentações e comentários sobre a temperatura. Pegaram um longo atalho de terra batida, para desembocar mais adiante, ao contorno que os levaria a Rodovia principal.

                        O nevoeiro embranquecia o ar, a estrada sinuosa estava ainda bastante deserta. O velho não era de muita conversa, formava frases curtas e preguiçosas em voz rouca, à pequenos intervalos. Paulo lutava contra o sono, seria descortês dormir enquanto o homem dirigia concentrado – apertando os olhos experientes para conduzi-los ao destino. Tentou distrair-se com um pequeno almanaque que encontrou sobre o painel, mas a luz enfumaçada da manhã de inverno, não ajudava. Procurou desatento um rádio, se houvesse, ia sugerir ouvirem as notícias, “gente de idade adora notícias”, considerou, isso o manteria desperto. Ah, ali estava, meio enferrujado, mas era um rádio. Perguntou casualmente: “ O senhor não gosta de ouvir o noticiário matinal? Dá boas informações aos motoristas” ... Gostava, gostava muito, disse o velho – mas o rádio estava quebrado, nunca se lembrava de consertá-lo. Observou o rapaz piscando sonolento e adivinhou-lhe o propósito:

                          - Se quiser dormir, não se avexe... Viajo sempre sozinho, moço, já estou acostumado.

                        Paulo relutou, mas como a conversa ficasse cada vez  mais arrastada, abandonou-se por uns minutos à letargia de um cochilo.

                                       *                          *                      *

                    
                  A estrada prosseguia monótona, e o velho diminuíra a marcha temeroso no nevoeiro que se adensava. Sorriu levemente ao perceber o rapaz adormecido, quisera ele poder fazer o mesmo, não tivera uma boa noite , o cansaço  o afligia.

                        Redobrou a atenção ao volante afastando o pensamento do sono, o percurso nesse trecho era inclinado e escorregadio, e com essa neblina, não podia facilitar.

                        O rádio estragado fazia-lhe falta, tão bom descer a serra ao ritmo da cantoria sertaneja nas manhãs clarinhas. O gado pastando nos vales lá embaixo, o furgão suspenso como um minarete, a estrada se desenrolando como serpente íngreme.

                    Os olhos do velho começaram a se embriagar, uma vertigem insistente se interpondo entre ele e a serra; bocejou encolhido – o frio estava mesmo de amargar. Assim que terminasse o longo declive, faria uma pausa no posto “Nova Esperança”, ia tomar um café bem forte com pão e manteiga. Acordaria o rapaz, ele ia gostar, deve ter saído de carreira, aposto que ainda não comeu nada.



                                           *                   *                 *       
  

                        Paulo chegava em casa, a manhã ia pelo meio, viu-se abrindo o portãozinho de ferro sem ruído, chegara mais cedo do que previra, ia fazer uma  bela surpresa. O pai devia estar lá dentro, sentado à cadeira de balanço lendo os jornais da manhã, a mãe com certeza dava ordens na cozinha, adiantando o almoço para esperá-lo. Sorveu o perfume das rosas, meu Deus, como as rosas desabrocharam cedo esse ano, os canteiros em festa, o carramachão coberto de flores miúdas. O cachorro corria para ele, um labrador castanho e brincalhão – lambendo-lhe as mãos enquanto o rapaz o afagava.

                        O jasmineiro exalava um perfume doce, o mesmo perfume inebriado da madrugada de sua visão. A menina lembrou-se, quem era ela afinal?

                        Não, agora não queria pensar em nada, só usufruir daquela felicidade mansa que o invadia. Como o jardim está bonito, admirou-se, e a casa branca, recém pintada, parecia resplandecer.

Abriu a porta com cuidado, o cachorro rente a ele resfolegando. Psiu, não faça barulho, quero ver a cara da mamãe quando eu abraçá-la, papai cheguei!



                                      *                    *                 *


                        Paulo emergiu com um solavanco abrupto, abriu os olhos, confuso, não estava em casa, o furgão vagava desorientado atravessando a pista. O velho tentava contê-lo desesperadamente, parecia aturdido e surpreso, os olhos injetados denunciavam que ele dormira na direção.

                        Numa rapidez caleidoscópica , o asfalto endoidecido se negava, rodopiando em úmida contenda. O carro ia de viés, arbustos fugiam rápidos, placas de sinalização eram tragadas, as mãos do velho lívidas se agarravam ao volante, lutando.

                        A amurada próxima, o despenhadeiro se agigantando , o matagal e as fendas rochosas se abrindo para o abismo. Paulo entreviu os vales ao longe, o impacto fatal no alambrado de proteção, vamos cair...

                                             *                   *                 *


       ... O tempo susteve os segundos vertiginosos, um hiato configurou-se congelando a velocidade aguda desencadeada.

                  Uma sensação de nenhum ruído, de uterina lassidão flutuante envolveu Paulo como um expectador distante e comovido, vendo sua própria vida compactada em repetidas lembranças.

          A mãe sorria em seu vestido de domingo, o terço brilhante enleado às mãos serenas. O pai agachado à garagem, concentrado na seleção dos caniços para a pescaria com os filhos. Os irmãos cantavam ao violão junto a ele, Clarinha e sua voz cortante como vidro estilhaçado.

            O “ Arte em Cena” e suas andanças incansáveis, a caminhonete azul parada novamente à sua porta... Os amigos que conhecera em toda parte, as  mulheres com que se deitara, as viagens intermináveis de suas apresentações. A voz de Elza, a velha atriz maternal, surgia remoçada e vibrante:

                        -- O que você tem Paulo? Está chorando?


                                                   *              *              *


               O tempo quedou-se novamente. Do fundo de suas lembranças, a menina se erguia branca e irreal, interrompendo suas visões – delineando-se próxima como se o resgatasse de muito longe.
           Paulo olhou-a pacificado no instante anterior ao mergulho do 

furgão no vácuo. No longo vestido bordado, os braços translúcidos se 

estenderam para ele, o sorriso enternecido e claro iluminando a manhã. 

O rapaz segurou-lhe as mãos, obediente, e então – num vivo presságio –

 soube quem ela era.

                                                                   Fim