Páginas

sexta-feira, 14 de junho de 2013

EMBOSCADA........(CONTO / GÊNERO : FANTÁSTICO)





“Emboscada”
                                         (suian moreira)
)


                        A tarde ia alta quando Rufino recebeu a visita do “Coroné”. O homem chegou imponente em seu cavalo terroso, um jagunço de cada lado, a bocarra meio frouxa num riso de desdém.

                        - Boas tarde Seu Rufino!

                        -Boa, Coroné...

                        Rufino fora pego de surpresa, e atrapalhado pelo mal estar que a visita lhe causava, não sabia como proceder. De certo que àquela altura, a vinda do peste não podia ser boa coisa. No descampado desnudo, não havia mais ninguém – só o silêncio do sol a pino retorcendo a caatinga do sertão. A mão tremeu levemente, buscando apoio no cabo da foice, o suor salgando-lhe a visão no perigo pressentido. Bicho atento e magro, Rufino esperava. Os três homens em sua montaria fizeram um cerco nervoso de tropel empoeirado à sua volta. Emboscada de morte assim tão cedo? Nem mesmo esperariam o anoitecer, quando as sombras encobririam o mistério cumulado? Rufino ponderou toscamente: a intuição perplexa, o raciocínio confuso.

                        A paisagem alargada repentinamente pela vontade de viver, a luxúria de respirar o ar quente de sua pequena chácara, crescendo. A lavoura de feijão a seus pés, regada à labuta e teimosia – desabrochando verde coragem. Tudo ali, havia nascido de sua dor e alegria – um parto lento e abafado – fundindo Rufino à terra, à água preciosa, e aos bichos que se arrastavam calorentos. De um instante para o outro definitivamente amoldados num só elemento. E um novo desejo estreitava-lhe o coração: sobreviver àquela tarde, fundir-se vivo, envelhecido, no futuro adiante.

                        Os olhos miúdos do Coroné na vigília de sua presa. Os cavalariços em seu balé circundante e agreste que entontecia. O cheiro de sal nas narinas brutas do jagunço avermelhado movendo o corpo à espreita da hora final. O outro – mulato de um olho branco – com a cara fechada na atenção arquejante, o olho furado medindo o chão para a cova apressada que cavaria daí a pouco.

                        Rufino serenamente continuava à espera, a sensação turva e inquieta de que o jogo da vida se extinguia. E ele mudo, erguido pelo vento a sustentá-lo, as calças largas e rotas coladas ao ar. Pisando a terra com raiva, arrastado pela correnteza de existir só mais uns segundos; as mãos sobre os olhos filtrando o medo, pequenos movimentos indefesos.

                        Pena não poder voltar a casa no fim da tarde, lavar o pescoço na camisa entreaberta; olhar Zefa fritando os nacos de carne, derrubar farinha no prato e comer com fúria. O hálito doce de Zefa na rede, o rosto enrugado da mãe tecendo fios acocorada no casebre, as noites compridas de sono empedrado. Depois acordar para um novo dia escarlate, a roça em brasa, as galinhas desarvoradas no terreiro, o café ralo e doce... Tão bom viver! Tão grande o milagre dos limites de seu próprio corpo que estremecia! O suor escorrendo-lhe nas costas empapando as vestes, o gosto de pó nos lábios; tudo nele se prolongava e era feliz... 

          *                                               *                                            *

           Fora um burro em não aquiescer à ganância do Coroné, devia ter aceitado de bom grado a mísera quantia oferecida pela compra de sua charneca, e continuaria vivo! Reconheceu a turra estúpida em apegar-se a seu sonho, cavar o chão seco até o surgimento do lençol de água, que ingenuamente alardeara aos quatro cantos. O coisa ruim, sabedor da novidade, insistira em comprar-lhe as terras poucas, agora valiosas pela descoberta da água.

                        Mas ele resistira pobre e teimoso contra o poder do “Bode Velho”, alcunha do Coroné em toda a redondeza. O praga ruim assuntara-o, insistira.Depois as ameaças e sabotagens. Os outros lavradores aconselhando “larga a mão de teimá com o Homi , antes que ele mande lhe matá”.

                        Naqueles confins era a Lei antiga, o mais forte pisoteando o que quisesse, esmagando quem não tinha tento, e ficava assim por isso mesmo...

            - Pirraça de Jegue! – condenou-se – Ninguém à vista pra me perder ou me achar. Vou morrer bem morrido e nem mato vali ligar prá nada.

         *                                                *                                       *
 

                        Um véu de amargura fundiu-o em penumbra, os minutos largos de sua tristeza aumentados por tudo que não ousara ser, e pelo que tinha sido em excesso. Cada galho seco, cada punhado da terra, tudo era seu corpo e sua presença nesta hora, pulsavam com força nele. Tanto amara aquela terra - além de si mesmo, crestada e rachada como de foice. Ferira as mãos anos e anos a umedecê-la, a fazer dela sua aliada, e tudo que nela crescia ou pousava eram sangue de um mesmo coração. Rufino misturado a tudo, aos pássaros, às pedras, às folhagens parcas cobertas de poeira. Aos lagartos furtivos, às secas e várzeas d’água, aos bichos, aos bichos.

                        Aves de arribação, cachorros secos e sarnentos, gado extraviado - costados ossudos em busca de água. Corujas, burricos feridos, gatos do mato, tatus, gambás, cabritos mambembes.  Apareciam pelo sítio, doentes, cegos, famintos    uma  vaga  lucidez  os  guiava para lá. Rufino piedoso, as mãos calejadas e atentas, livrando-os dos bernes e das chagas, dividindo o pouco que tinha com os pobres diabos. A mulher, incontida, ralhava:

                        -- Larga mão dessas bichada moribunda, homem de Deus! Mania besta de gastar-se com esses nojos...

                        Rufino obstinado afastava-se a contragosto:

                    -- Deixa eu cuida dos bichos, mulé! É tudo criação de Deus...

                        Desde menino era assim. Deitava-se horas às margens do pequeno açude, debruçado sobre suas águas verdes e lodosas, e lá vinham os náufragos – besouros, abelhas, gafanhotos – recolhia-os sôfrego, enfileirava-os ao sol com extremo zelo, sussurrava-lhes enternecido: ”Você tá vivo, já pode avoar... vai”...

Alguns sacudiam as finas asas e partiam de imediato; outros se entregavam ao sol sem forças, na imobilidade da exaustão. Rufino os vigiava arquejante, transferindo-os depois à frescura de ramagens, onde repousassem sem quentura.

                        Abrigava pássaros caídos dos ninhos, alimentando-os com pequenas porções de fubá e água, empurrados goela abaixo por algum graveto. Protegia-os dos gatos esfomeados, fazia dos dedos um trampolim seguro de pequena altura para ensiná-los a voar. Depois os via partir livres, e seu peito magro de menino se enchia de uma estranha onipotência. Deus dizia-lhes nessas ocasiões, que também Ele era assim – cuidando dos homens e suas almas, para depois libertá-los, setas lançadas às suas próprias possibilidades.

     *                                                  *                                           *
 

                        Uma vez, na pobreza de sua infância, o pai ganhara a título de pagamento, dois porquinhos sebentos e miúdos – recebidos com aclamada satisfação:

                        -- Vou criar e engordar eles, depois passo a faca. Vão dar um bom dinheiro – dissera o pai.

                   Rufino assustou-se, a revolta engasgada, mas até crescerem ainda ia tempo; aquietou-se. Os leitões o seguiam a toda parte, a molecada imunda do roçado troçava dele; o pai lascava-lhe a pernas em chibatadas:

                        -- Moleque atentado, lugar de porco é no cercado. Porco num é cachorro seu Besta! Porco tem que ficar cingido prá engordar!

                        Uma noite, Rufino acordou sufocado, o amanhecer se avizinhava, abandonou a esteira de um sobressalto; então ouviu. Longe como um gemido de criança, insistente e dolorido – os grunhidos terríveis que o assolariam para sempre. O pai matava o porco pelas bandas do capinzal, levara o bicho para morrer distante, ciente de que o menino o tentaria impedir. Rufino correu pela caatinga, os espinhos rasgando-lhe as carnes, seus gritos se misturando aos guinchos frementes do porco. No dia seguinte, Rufino como sonâmbulo – os olhos febris, o ódio mudo buscando o pai, o pensamento numa idéia que salvasse o outro porco de semelhante destino.

                        Quando a noite desceu, esperou que todos dormissem, muniu-se de um cordel e deslizou pelo pasto, o leitão enrodilhado na coleira improvisada, o acompanhando em silêncio rápido – como se soubesse. Foi desta feita que Rufino foi-se embora, e só retornou a casa, dois anos depois. O porco havia morrido de morte natural.

                        O pai chamou-o de ingrato, deu-lhe uma sova doída para compensar o tempo em que estivera fugido. Mas, a pedido da mulher deixou-o ficar. O menino estava crescido, e precisava mesmo de uns bons braços na lavoura.



                     ... Inteiriçada sobre o campo, a vida se desembrulhava. Sob a tarde ígnea, os dias vividos se debruçavam, e eram tantos a apinhá-lo! Os pardais raquíticos, flâmulas gorjeantes em desolado canto; a gleba morrendo a morte de Rufino.

                        A solidão imersa das lembranças, nem rastro deixaria. Desejou infinitamente a comunhão com um ser vivo – partilhar seu último medo, debulhar seus olhos mareados no reflexo de outros olhos, levar consigo o que ia em volta, o mato ressequido, a água ruiva, as árvores brancas.


            *                                        *                                        *          
     

                        O brilho da faca na mão do jagunço vermelho, os cavalos resfolegantes no círculo ininterrupto trotando. O vulto do Coroné galgando zombeteiro, rodopiando feito urubu.

                        Rufino baixou os olhos, preparou-se – a dor antes do golpe era lancinante. Então, sentiu-se olhado. Olhos grandes e calmos sobre ele, uma tímida carícia vinda das orbitas castanhas dos cavalos. Indiferentes as intenções sanguinárias de seus montadores, os cavalos fitavam docemente o desamparo do lavrador e compreendiam.

                        Rufino incrédulo piscando, a simbiose descortinada, a visão turva se refletindo nas pupilas atreladas. E uma doida alegria devastou-o, os cavalos compreendiam, os cavalos compreendiam, compreendiam!

                        Na dança que girava a concórdia, sem palavras ou significados, os animais relinchando, vitoriosos e imensos se livrando de seus fardos. O Coroné e os jagunços lançados por terra. Os cavalos convergindo em circulo sobre eles, erguendo as patas rudes em golpes mortais; num ritual frenético de movimentos exatos. 


créditos : TEXTO: Suian Moreira
                 foto 1 (sol em vermelho by kalu DaSilva)
                 foto 2  (os cavalos de goethe> E.Ei.Aun)