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sábado, 20 de julho de 2013

MEIA NOITE OUTRA VEZ...por Suian Moreira





                        O calor insuportável, talvez isso. Ou as moscas, ou a angústia, não sabia ao certo.
                        Ligou a televisão e decidiu-se:  “amanhã vou embora, pronto. Acordo dessa noite que nem existiu, ponho as malas no carro, e finito – adeus fantasmas”. Ia voltar à escola, esquecer tudo: a casa que cheirava a passado, a tia enlouquecendo distraída, o vulto indefinido sob a luz do pátio – à espera – sempre a meia noite.
                        - Só preciso partir – pensou, e surpresa, verificou que nada a impedia. Alegrou-se, como se a descoberta da fuga tão óbvia, fosse a porção milagrosa a absolvê-la de seus pecados. Ralhou consigo num lamento:
                        -- Mas que pecados, meu Deus, não tive culpa de nada!
                        Não voltara a fazenda desde o ano anterior, época em que a “tragédia” se consumara – não era assim que os tios e as pessoas da região se referiam ao acontecido? “Tragédia” repetiu no escuro; seria a palavra uma forma de redimi-la da culpa pela morte da prima? Certamente que sim, mas os esforços eram inúteis. Bruna sentia que uma parte de si morrera com Aurélia, uma parte substancial do seu próprio equilíbrio e força, que só existira em função da fraqueza e demência da outra. Um espelho ao inverso, onde era seguro mirar-se e descobrir-se inteira. Quando o cristal foi partido apressou-se a juntar os cacos, e só então percebeu que partes suas e de Aurélia estavam irremediavelmente embaralhadas.
                        Bruna movia-se cautelosa pelo quarto, esquadrinhando o crepúsculo, como se de algum canto esquecido o passado saltasse sobre ela. Nada ali mudara: o chão de largas tábuas enceradas guardava o mesmo cheiro, os móveis escuros e a cortina rosada, o gabinete imponente rescendendo a canela. E ao fundo, o toucador. Ah, ali sem dúvida, no espelho de hastes douradas, morava a prima ainda.
                        Quase podia vê-la na tarde longínqua, sorrindo para o próprio reflexo, erguendo a escova engasgada de fios, penteado infinitas vezes os longos cabelos, o olhar sempre úmido e inquieto, o tremor nas mãos, resquícios de sua enfermidade :
                        -- E então Bruna? De volta ao tédio da fazenda?
                        O riso sarcástico , agudo, e os dedos pálidos comprimindo a escova, fèrreamente. Eram o emblema da grave histeria, que a acometia, desde sempre.
                        Sobre o toucador, frascos de perfumes se misturavam aos vidrinhos róseos de pílulas para insônia, para enxaqueca, para os nervos – uma variedade de sintomas reais e imaginários. E os vidros maiores, com tarjas especiais, disfarçados entre porta-jóias, para seus  acessos e desfalecimentos.
                        Bruna demorou-se a olhá-la. De alguma forma Aurélia se parecia ao mármore que revestia o toucador. Visto assim ao entardecer, atulhado de bibelôs e porcelanas, aparentava solidez. Mas iluminado pelo sol da manhã, as rachaduras finas e escuras, davam a impressão de que fosse explodir a qualquer momento.
                        Ouviu-se responder paciente:
                        -- Que tédio Aurélia? O que é isso? Você sabe que adoro a fazenda. E que me preocupo com você! E nem é só preocupação, é saudade também!
                        -- Bruna, Bruna... Não precisa mentir para mim – Aurélia exibia um riso hostil e seus olhos ficaram ligeiramente estrábicos.  Bruna conhecia bem esse sintoma : se não houvesse um apaziguamento rápido, esse era o gatilho para um disparate de ofensas e gritos. Que terminariam numa crise de fúria. Aurélia recomeçou num tom ainda mais zombeteiro e hostil:
              - Gosta tanto da fazenda e de mim, que deu no pé... Só vem se refazer dos ares urbanos...ver uns boizinos...a priminha doente e os tios decrépitos...
             Bruna pensou rápido, adoçou a voz e tocou-lhe os cabelos com verdadeiro afeto:                   -- Não seja injusta Aurélia. Você sabe como a escola é longe. Bem que eu gostaria de vir sempre, mas só tenho dois períodos de férias no ano e pouco dinheiro... O que posso fazer?
                        Aproximou-se afagando-lhe os ombros:
                        -- Vamos, deixe de bobagens! Vamos ficar um longo tempo juntas. E estou morrendo de curiosidade sobre o assunto misterioso que você mencionou na carta.
                        A paz foi restabelecida, Aurélia adquiriu um tom suave e confessou inquieta:
                        -- Você quer mesmo saber? Será que os mexericos rurais ainda lhe interessam?
                        Bruna riu, sentando-se junto dela, e disse “claro, sua tonta. Sou apenas uma caipira estudando na cidade”. A outra também riu e recostou-se de leve em seu braço, como fazia quando eram crianças e Bruna a distraía de seus medos.
                        Aurélia hesitou por um momento, esquecida do assunto, e então de um salto pareceu lembrar-se e agitou-se:
                        -- É sobre o Fernando! Ele está de volta para uma temporada mais longa na Fazenda dos Ingás. Encontrei-o na sorveteria da Vila, ele tinha acabado de chegar. Já faz uns dias... fiquei impressionada assim que o vi. Ele foi tão carinhoso comigo! E está mais bonito ainda...Depois disso, reatamos a antiga amizade, temos conversado muito!
                        Pôs as mãos sobre o peito num arrebatamento dramático:
                        --Ai, Bruna! Estou apaixonada! Apaixonada de verdade!
                        -- Apaixonada? Pelo Fernando?  - A surpresa de Bruna era nítida – mas vocês nunca se entenderam...
                        A outra se justificou:
                        - Coisas de criança! Somos crescidos agora, ele está quase se formando. Aposto que vai ser um advogado de sucesso !  E sabe, mamãe disse que é invenção minha, mas acho que  ele  está flertando comigo.
                        Sua voz era quase suplicante:
                        -- Você não se importa, não é Bruna? Afinal, ele foi seu primeiro namorado...
                        Foi a vez desta retrucar:
                        -- Isso foi há cinco , não, seis anos atrás! E nem posso considerar “aquilo” como namoro. Foi apenas uma bobagem, nem me lembrava mais...
                        Bruna mentia. Lembrava-se de tudo, nitidamente. Seu baile de quinze anos, a casa entulhada de flores, o tio não medira esforços para apresentá-la como uma princesa. Convidados e fazendeiros de toda região, eram recebidos à entrada – passando pelo longo tapete de veludo, até atingirem o salão principal. Uma pequena orquestra tocava ao fundo, Bruna corria de um lugar à outro, acolhendo as felicitações num longo soiré de rendas. Sentia-se  adulta, os cabelos presos por grande fivela de strass; o ar severo e as sobrancelhas fartas emprestavam ao rosto adolescente, uma suave precocidade.
                        A valsa e seus rodopios, Aurélia que estivera o dia todo fechada numa estranha concha de isolado despeito, dançava ao som dos violinos, sorrindo, contagiada pelo brilho da festa.
                        Fernando, alto demais para seus dezesseis anos, destacava-se no salão, fingindo estar encantado. Bruna ficou a segui-lo com o olhar divertido, vendo-o trocar o temperamento selvagem e as vestimentas rudes, pelo traje antiquado e maneiras cordiais.
                        Seus olhares se cruzaram, Fernando fez-lhe uma mesura engraçada, os olhos azuis faiscando. Bruna veio ao seu encontro, convidando-o a dançar:
                        -- Venha nos divertir um pouco Fernando, a festa está muito formal! – riu-se.
                        Os corpos embriagados pelo ritmo do jazz, o salão resplandecente na madrugada, os garçons bocejando furtivos. Fernando a conduzindo desajeitado, os dois rindo em desatino, a respiração aguçada pela proximidade atroz. Ele sugeriu que fossem ao jardim, queria falar-lhe. Então, fragilizou-se – confessou que sempre a amara, o rosto imberbe repentinamente grave. Bruna descobriu-se a desejá-lo, seus dedos tocaram os cabelos revoltos do rapaz, beijaram-se.
                        O romance durou pouco mais que um mês, logo a vida real os chamava para compromissos inadiáveis: Bruna voltava à escola na capital, e Fernando foi mandado ao Colégio Militar preparatório, que exigia-lhe esforços disciplinados.

                                             *                 *                *          *

                        Bruna assustou-se. Esquecera quase por completo o amor juvenil tão intenso – até aquele dia. Esqueci ou fingir esquecer? perguntou-se. Aurélia discorria excitada, as veias azuis transparentes nas mãos nervosas remexendo as gavetas do toucador:
                      -- Hein, Bruna? O que devo fazer, diga? Quero conquistá-lo definitivamente    . E só terei um mês para isso antes que ele parta!
                        Bruna estava preocupada. Conhecia o caráter obsessivo de Aurélia. Ela já estava discursando há horas, tomada por uma paixão doentia cujo objeto era Fernando. Tentou tranqüilizá-la:
                        -- Vou ajudá-la sim, mas não posso lhe dar uma receita infalível. Isso não existe! Mas não fique tão agitada Aurélia. No amor, às vezes, as coisas acontecem devagar...
                        Aurélia replicou-a aflita:
                        -- Mas não há tempo, criatura! Ele volta à São Paulo em um mês e pouco, já disse. Sua voz era aguda, imperativa; os olhos fixos e muito abertos refletiam uma tempestade interna.
                        Bateu com os punhos no toucador, os lábios apertados numa expressão raivosa: repetindo cada vez mais alto:
                        -- E eu o quero prá mim de qualquer jeito. Quero que ele seja meu, entende? Que seja meu!
                        Sim, entendia – refletiu Bruna atordoada. A prima continuava a menina mimada e sem limites, debruçada sobre seus caprichos e ordenando a todos que os realizassem a qualquer custo. Não tinha parâmetros para circunstâncias reais e nem se preocupava em descobri-las. O mundo era um brinquedo – que ela manuseava distraída, adaptando-o as suas conveniências.
                        Não havia o que dizer nessas ocasiões, Bruna o sabia. Conselhos ou preleções sobre os fatos de nada serviriam, a não ser atiçar a fúria asmática da prima.
                        A temporada na fazenda prometia, Bruna resignou-se. Aurélia não lhe daria um só dia de descanso, com as conversas intermináveis que girariam sobre o mesmo assunto: Fernando.
                        Bruna temia por ela. Lembrava-se bem do último romance da prima: um leve namorico com um fazendeiro local se transformara em uma aflição para todos: Aurélia dissecara o assunto compulsivamente durante um ano, teve uma grave depressão, e chegou a ensaiar um suicídio, tomando uma dose exagerada de sedativos.
                        Naquela mesma tarde Aurélia telefonou a Fernando, afetando maneiras casuais: “tem compromisso para a noite?”, Bruna também havia chegado para as férias comentou,” não quer se juntar a nós para um carteado? ”     
                        Daquele dia em diante, Fernando passou a freqüentar a casa todos os dias. Chegava sempre ao entardecer montado num alazão, cavalgando livre pelos campos, feliz por estar de volta ao lugar aonde crescera, cercado dos rostos familiares de sua infância. O rapaz mostrava-se sempre afetuoso e descontraído com as moças, e os três pareciam ter voltado ao tempo de sua mesmice, quando inseparáveis, partilhavam jogos e descobertas.
                        Aurélia, movida pela paixão que a consumia, perfumava-se para esperá-lo, cacheava os cabelos, gastava-se experimentando roupas – combinando brincos. Bruna vestia-se rusticamente, cavalgava arredia, participava dos jogos ausentando-se com freqüência. Sabia-se um instrumento para a conquista de Aurélia e não desejava aguçar a atenção de Fernando – que a perseguia com olhos enternecidos a cada movimento.
                        Aurélia, enleada em seu devaneio, nada percebia – e cada gesto de delicadeza fraterna por parte do rapaz – era interpretado como prenúncio de amor.
                        -- Você viu Bruna, como ele está se chegando a mim? Exultava.
Bruna recolhia-se temerosa, aconselhava Aurélia chamando-a a razão, tivesse calma, o tempo era senhor de tudo. Em vão. Aurélia estava tomada de um frenesi obstinado, emagrecia a olhos vistos, passava as noites em claro armando estratégias romanescas para sua conquista. Anotava frases de efeito, escrevia mensagens e poemas ao rapaz – que rasgava logo em seguida, em busca da declaração perfeita.
                        Bruna comunicou sua preocupação aos tios, não queria alarmá-los, mas Aurélia andava sem fome e não dormia bem. Não seria o caso de chamar Dr. Getulio, só por desencargo? Uma consulta de rotina hein, tio? Os tios tranqüilizaram: já haviam percebido e também se preocupavam. O médico já fora notificado – estava de férias nas montanhas, mas retornaria em poucos dias para ver Aurélia e aconselhá-los.
                        -- Mas não se aflija minha filha – disse a tia. Em breve o médico virá, e quando você e Fernando voltarem à capital vamos dar um jeito de distraí-la. Comentamos a possibilidade de uma temporada fora e ela se mostrou muito contente. Tudo vai ficar bem!

               *          *          *          *          *          *          *          *          *          *         
                        As férias chegavam ao fim, Bruna antecipava sua volta à escola com um certo alívio. As coisas estavam sob controle, suspirou. Preparava-se para o banho, lixando as unhas concentrada, quando Aurélia interrompeu pelo quarto, o rosto afogueado, os olhos brilhantes:
                        -- Bruna, adivinhe! Acho que “ ele” vai se declarar hoje. Telefonei para convidá-lo a uma partida de gamão à noite, e ele concordou . estava com a voz séria, disse que precisava falar comigo.
                        Pulava de contentamento, na certeza da declaração de amor que Fernando lhe faria.

                               *          *          *          *          *          *          *          *          *

                        Ainda não. Abriu as pálpebras dormentes na escuridão do quarto aos rumores da casa haviam cessado. Levantou-se lentamente, como se um peso interior a sufocasse. Buscou na mesinha os cigarros, o faiscar abrupto do isqueiro romperam as sombras, num presságio. Afastou as cortinas e deparou-se com o pátio cintilante sob o luar.
                        As imagens pálidas se revelavam aos poucos, fragmentadas pelo desejo de esquecê-las. Os fantasmas estavam de volta.

                                *          *          *          *          *          *          *          *
                       
                        ... Aurélia estivera todo o dia suspensa por uma espécie de febril encantamento, sertã de que àquela noite, Fernando is se declarar. A habitual escolha do traje havia recaído sobre um leve vestido branco, que lhe davam um aspecto diáfano e pueril.
                        Bruna torcia para que seus delírios se tornassem realidade, amava a prima sinceramente – temia que um súbito corte em seus planos se transformasse em nova depressão. Mas no íntimo, pressentia que os sentimentos de Fernando para com ela eram idênticos aos seus – uma zelosa piedade.
                        Naquela noite, Fernando chegou quase às nove horas, um imprevisto o tinha retardado, desculpou-se antes mesmo de desmontar. Bruna assistia à sua chegada recolhida em seu quarto, esquivando-se rente à vidraça, encoberta pela penumbra. A noite estava clara, um ar cálido soprava entre as folhagens, as estrelas pareciam aumentadas e vigilantes.
                        O rapaz deu um tapinha no dorso do cavalo, para que o animal se largasse na relva. Aurélia o esperava ao alpendre, disfarçando a ansiedade num sorriso débil. Fernando caminhou em direção a ela, tomou-lhe o braço e afagou-a com o olhar – como se faz a um bichinho, um poodle insistente que venha nos receber.
                        Guiado por um comando invisível, o rapaz relanceou um olhar à sua janela, e Aurélia acompanhou-lhe o gesto. Bruna quis refugiar-se a visão do jovem casal, mas foi surpreendida pela voz escarpada da prima:
                        -- Desça Bruna, venha conversar com a gente!
                        O pedido era um evidente recado. Aurélia sentia-se insegura, e a presença protetora de Bruna a acalmava.
                        -- Não me sinto bem – respondeu-lhe debruçada a janela – Vou ler um pouco, não reparem...
                        Cumprimentou Fernando com um aceno amável e recuou, decidida a permanecer no quarto.
                        -- Venha Bruna! – a voz do rapaz era uma ordem. Continuou: - Ou iremos até aí. Não pense que às vésperas de sua partida, vai se livrar de nós assim tão fácil!
                        Dizendo-lhe isso, sorriu cúmplice para ela, indicando Aurélia com um trejeito de olhar, que significava não querer ficar a sós com ela. Bruna abominava essa situação. Desde menina, quando fora morar com os tios, sentia-se um joguete – solicitada e imprensada às necessidades de Aurélia. E como se não bastasse ser o pilar das fragilidades da prima, tinha que desempenhar o mesmo papel em relação às pessoas que Aurélia espicaçava.
                        Reviu Fernando menino, exasperado e aflito pedindo-lhe socorro, os boizinhos de brinquedo pisoteados:
                        -- Bruna, olha a Aurélia aqui: vem dar um jeito nela!

                                   *          *          *          *          *          *          *          *                     
-- Que jeito? – disse para si. Vestiu um sobretudo e foi unir-se a eles.
                        A noite decorreu como de costume , o carteado após a conversa na varanda, os refrescos alaranjados servidos pela tia. Fernando mantinha-se jovial e falante, mas uma vaga preocupação era visível em seu rosto.
                        As horas avançavam rápidas, dirigiram-se a certa altura ao jardim. Bruna estava sonolenta, ensaiou despedir-se para dormir, mas foi contida por Fernando:
                        -- Só mais um pouco Bruna, também vou me recolher. Antes, gostaria de conversar com Aurélia sobre algumas coisas e gostaria que você estivesse presente.
                        Em seguida, como que para ganhar tempo, adiantou-se a recolher o cavalo atando-o a uma árvore próxima. Pigarreou, apalpando-os em busca de algo. Ficou relutante, de pé sobre o gramado, as moças constrangidas à espera.
                        -- Acho que deixei meus cigarros lá dentro – falou, dirigindo-se a Aurélia.
                        -- Vou buscar – disse ela num salto, correndo em direção a casa.
                        O rapaz seguiu-a com o olhar e assim que ela se afastou, confidenciou à outra:
                        -- Escute Bruna, tenho tentado lhe falar a sós há algum tempo.
                        Vacilou, confuso, procurando as palavras:
                        --  Parece que as  coisas estão tomando um rumo anh ... diferente. Não quero parecer pretensioso, mas tenho notado a crescente fixação de Aurélia por mim. Você sabe que a estimo como a uma irmã. Pigarreou, tirando da fronte, uma mecha de cabelo insistente, e repetiu :  Aurélia  para mim,  é como uma irmã...nada mais.
                        Bruna o ouvia consternada, adivinhando-lhe as palavras, e em seu íntimo já as sonhara mil vêzes: via-se em devaneios, a afagando-lhe os cabelos rebeldes, tateando seu rosto com os  dedos trêmulos de emoção, os olhos fechados enquanto suas bocas se uniam, enlaçados num abraço há muito desejado. Embora lutasse contra esse amor nascido de forma tão tímida e reprimida, não havia mais como negá-lo. Amava Fernando e  não importava o resto. Queria amá-lo, exaurir essa paixão em gestos, palavras, carinhos, e mais o que houvesse...Podiam fugir, se encontrar na cidade para poupar Aurélia, mas queria-o tanto que tremia. Fernando continuava a falar, e Bruna mal o ouvia, os olhos  em seus olhos estavam tristes, mas o semblante decidido:           
                        -- Não quero magoá-la, nós dois sabemos o quanto ela é frágil. Mas também não quero que ela alimente idéias a meu respeito. Vim esta noite, decidido a esclarecer tudo. Pensei em falar com ela – com muito tato, é claro – sobre meus verdadeiros sentimentos...
                        Como ela  permanecesse calada, perguntou-lhe:
                        -- O que você acha, Bruna? Será que pode me ajudar?
                        Bruna olhava para ele, não sabendo o que dizer. Sentia naquele momento, a forte atração que sempre os unira, lamentando intimamente, a paixão descabida de Aurélia – fazendo-os recuar diante dos próprios sentimentos. O rosto contido do rapaz também denunciava o desejo oculto. Ficaram a se olhar por alguns minutos como se o tempo e os empecilhos não existissem – inebriados e atentos a presença um do outro.
                        Bruna tentava desvencilhar-se dessa revelação muda em que ambos se quedavam; o rosto fixado nele, hipnotizada e temerosa. Fez um movimento em retirada, mas o rapaz segurou-lhe o braço. Os olhos azuis a perscrutavam sedentos:
                        -- Há mais uma coisa que desejo dizer-lhe: não fuja, Bruna, sei que você sente o mesmo! Amo-a como nunca amei ninguém, eu a quis durante todo esse tempo em que estivemos distantes. E se me fiz tão presente aqui durante esses dias, foi para tê-la perto, revelar o que sinto.
                        Bruna sentiu-se tragada por um folhetim irreal, dividida entre o impulso de atirar-se em seus braços e o muro erguido por Aurélia, que a impedia de amá-lo  declaradamente. Absorvidos pela emoção que os tomava, flutuavam esquecidos do resto do mundo, e lançaram-se a um beijo aflito e crescente, com a febre dos que amam pela primeira vez. Desvencilharam-se quando um gemido abafado despertou-os.
                        Aurélia estava parada a alguns metros, encoberta pelas sombras da figueira enramada. Fitava-os com os olhos muito abertos, o rosto contraído numa máscara dolorosa. Avançou sobre eles em fúria insana, os punhos cerrados desferindo golpes enquanto gritava:
                        -- Eu odeio vocês, odeio! Quero que vocês morram, estão me ouvindo? Quero que vocês morram!
                        Chorava ruidosamente, e a um só movimento, desatrelou  o cavalo, saltou sobre ele, e saiu em precipitada fuga, açoitando o animal que trotava desorientado.
                        Fernando ainda tentou detê-la, mas nada pode fazer, a cena se desenrolara num segundo. Bruna estava imobilizada, o rosto ardia pela bofetada desferida, as lágrimas escorriam cegando-a.
                        Refeitos da surpresa que os devastara, saíram correndo em direção ao caminho tomado por Aurélia. Inútil, seu vulto desaparecia entre as fileiras do milharal, o alazão relinchando veloz.
                        Guiados pelos ruídos do tropel desenfreado, prosseguiram ofegantes a perseguição. As mãos frias de suor se encontraram, pararam um instante para recuperar o fôlego. Fernando amparou Bruna que se desequilibrava, ouviu-lhe a respiração lancinante, quis prolongar em um segundo a pausa. Bruna puxou-o pelas mãos com firmeza, incitando-o a continuarem a corrida. Temos que deter Aurélia, disse. Naquele momento, já adivinhava o  pesadelo que cairia sobre eles.
                        Deixaram para trás o milharal, e ao penetrarem na campina enluarada, viram o cavalo parado às margens do rio. Aurélia avançava como sonâmbula pelas águas profundas, já alcançando a correnteza voraz das cheias. As chuvas de verão tinham sido intensas naquele ano, o rio se avolumava transbordado de seu leito.
                        -- Fique aqui, vou pegá-la – disse Fernando lançando-se às águas.
                        Bruna viu o corpo da prima sendo tragado como um graveto, os cabelos submergindo, dourados á luz da noite. Fernando nadava furiosamente, tentando salvá-la a todo custo.O rio era agora um túnel negro e feroz, disparado como uma locomotiva improvável, sem se deter a seus apelos.
                         Bruna sentara-se a uma pedra, suas pernas não mais a sustinham, o olhar vagava extático, o raciocínio embotado pelo choque. Gritou ainda, horrorizada pela imagem de Fernando sendo tragado pelo negrume que se encerrava.
                        Agora, a claridade da lua cheia iluminava a superfície do rio sem nenhuma mácula, o rapaz e a prima não eram mais visíveis, talvez a corredeira os tivesse levado mais abaixo. Um pensamento lhe ocorreu no estorpor que a dominava: ia voltar à fazenda e pedir ajuda, daria tempo?
                        Olhou o relógio da parede num gesto automático: meia noite em ponto.
                        Correu com os espinhos rasgando-lhe a pele, implorando e soluçando ao vento , a alma dilacerada,  os pés sulcando a terra na esperança do tempo que se perdia. Depois lembrava-se de si mesma, como mera espectadora, chegando ao casarão aos gritos, desgrenhada e  ferida, e as vozes ao seu encontro. Então, tudo que se seguiu mergulhava em sombras.
                        ... No dia seguinte, ao alvorecer, as buscas de salvamento encontraram dois corpos. Aurélia tinha o semblante de quem dormia, estava fria e luminosa,e as mão náufragas agarradas ao suéter do rapaz, como algemas . Nem  mesmo o  capataz forte , que içara para  a margem do rio os corpos encontrados e acostumado a lida com os bois da fazenda, tinha sido capaz de desprender os dedos frágeis de Aurélia dos braços hirtos de Fernando. Este, tinha o semblante paralisado numa máscara de horror e surpresa, como se a morte afinal, o tivesse vencido  numa casualidade traiçoeira.

                 *          *          *          *          *          *          *          *          *
                        Bruna emergiu de seu pesadelo, o relógio cuco batia insensível a hora desolada, as badaladas ecoando pelo casarão da fazenda. Fechou os olhos em pânico, tampando os ouvidos ao soar do bronze, não havia saída. Meia noite outra vez. Deixou-se cair extenuada no assento do toucador. O riso histérico de Aurélia foi crescendo, a voz irônica e estridente emanava do fundo do espelho:
                        -- Eu o quero prá mim de qualquer jeito. Quero que ele seja meu, entende?  Que seja meu!