O
calor insuportável, talvez isso. Ou as moscas, ou a angústia, não sabia ao
certo.
Ligou
a televisão e decidiu-se: “amanhã vou
embora, pronto. Acordo dessa noite que nem existiu, ponho as malas no carro, e
finito – adeus fantasmas”. Ia voltar à escola, esquecer tudo: a casa que
cheirava a passado, a tia enlouquecendo distraída, o vulto indefinido sob a luz
do pátio – à espera – sempre a meia noite.
-
Só preciso partir – pensou, e surpresa, verificou que nada a impedia.
Alegrou-se, como se a descoberta da fuga tão óbvia, fosse a porção milagrosa a
absolvê-la de seus pecados. Ralhou consigo num lamento:
--
Mas que pecados, meu Deus, não tive culpa de nada!
Não
voltara a fazenda desde o ano anterior, época em que a “tragédia” se consumara
– não era assim que os tios e as pessoas da região se referiam ao acontecido?
“Tragédia” repetiu no escuro; seria a palavra uma forma de redimi-la da culpa
pela morte da prima? Certamente que sim, mas os esforços eram inúteis. Bruna
sentia que uma parte de si morrera com Aurélia, uma parte substancial do seu
próprio equilíbrio e força, que só existira em função da fraqueza e demência da
outra. Um espelho ao inverso, onde era seguro mirar-se e descobrir-se inteira.
Quando o cristal foi partido apressou-se a juntar os cacos, e só então percebeu
que partes suas e de Aurélia estavam irremediavelmente embaralhadas.
Bruna
movia-se cautelosa pelo quarto, esquadrinhando o crepúsculo, como se de algum
canto esquecido o passado saltasse sobre ela. Nada ali mudara: o chão de largas
tábuas enceradas guardava o mesmo cheiro, os móveis escuros e a cortina rosada,
o gabinete imponente rescendendo a canela. E ao fundo, o toucador. Ah, ali sem
dúvida, no espelho de hastes douradas, morava a prima ainda.
Quase
podia vê-la na tarde longínqua, sorrindo para o próprio reflexo, erguendo a
escova engasgada de fios, penteado infinitas vezes os longos cabelos, o olhar
sempre úmido e inquieto, o tremor nas mãos, resquícios de sua enfermidade :
--
E então Bruna? De volta ao tédio da fazenda?
O
riso sarcástico , agudo, e os dedos pálidos comprimindo a escova, fèrreamente.
Eram o emblema da grave histeria, que a acometia, desde sempre.
Sobre
o toucador, frascos de perfumes se misturavam aos vidrinhos róseos de pílulas
para insônia, para enxaqueca, para os nervos – uma variedade de sintomas reais
e imaginários. E os vidros maiores, com tarjas especiais, disfarçados entre
porta-jóias, para seus acessos e
desfalecimentos.
Bruna
demorou-se a olhá-la. De alguma forma Aurélia se parecia ao mármore que
revestia o toucador. Visto assim ao entardecer, atulhado de bibelôs e
porcelanas, aparentava solidez. Mas iluminado pelo sol da manhã, as rachaduras
finas e escuras, davam a impressão de que fosse explodir a qualquer momento.
Ouviu-se
responder paciente:
--
Que tédio Aurélia? O que é isso? Você sabe que adoro a fazenda. E que me
preocupo com você! E nem é só preocupação, é saudade também!
--
Bruna, Bruna... Não precisa mentir para mim – Aurélia exibia um riso hostil e
seus olhos ficaram ligeiramente estrábicos.
Bruna conhecia bem esse sintoma : se não houvesse um apaziguamento
rápido, esse era o gatilho para um disparate de ofensas e gritos. Que
terminariam numa crise de fúria. Aurélia recomeçou num tom ainda mais
zombeteiro e hostil:
- Gosta tanto da fazenda e de
mim, que deu no pé... Só vem se refazer dos ares urbanos...ver uns boizinos...a
priminha doente e os tios decrépitos...
Bruna pensou rápido, adoçou a voz
e tocou-lhe os cabelos com verdadeiro afeto: --
Não seja injusta Aurélia. Você sabe como a escola é longe. Bem que eu gostaria
de vir sempre, mas só tenho dois períodos de férias no ano e pouco dinheiro...
O que posso fazer?
Aproximou-se
afagando-lhe os ombros:
--
Vamos, deixe de bobagens! Vamos ficar um longo tempo juntas. E estou morrendo
de curiosidade sobre o assunto misterioso que você mencionou na carta.
A
paz foi restabelecida, Aurélia adquiriu um tom suave e confessou inquieta:
--
Você quer mesmo saber? Será que os mexericos rurais ainda lhe interessam?
Bruna
riu, sentando-se junto dela, e disse “claro, sua tonta. Sou apenas uma caipira
estudando na cidade”. A outra também riu e recostou-se de leve em seu braço,
como fazia quando eram crianças e Bruna a distraía de seus medos.
Aurélia
hesitou por um momento, esquecida do assunto, e então de um salto pareceu
lembrar-se e agitou-se:
--
É sobre o Fernando! Ele está de volta para uma temporada mais longa na Fazenda
dos Ingás. Encontrei-o na sorveteria da Vila, ele tinha acabado de chegar. Já
faz uns dias... fiquei impressionada assim que o vi. Ele foi tão carinhoso
comigo! E está mais bonito ainda...Depois disso, reatamos a antiga amizade,
temos conversado muito!
Pôs
as mãos sobre o peito num arrebatamento dramático:
--Ai,
Bruna! Estou apaixonada! Apaixonada de verdade!
--
Apaixonada? Pelo Fernando? - A surpresa
de Bruna era nítida – mas vocês nunca se entenderam...
A
outra se justificou:
-
Coisas de criança! Somos crescidos agora, ele está quase se formando. Aposto
que vai ser um advogado de sucesso ! E
sabe, mamãe disse que é invenção minha, mas acho que ele está flertando comigo.
Sua
voz era quase suplicante:
--
Você não se importa, não é Bruna? Afinal, ele foi seu primeiro namorado...
Foi
a vez desta retrucar:
--
Isso foi há cinco , não, seis anos atrás! E nem posso considerar “aquilo” como
namoro. Foi apenas uma bobagem, nem me lembrava mais...
Bruna
mentia. Lembrava-se de tudo, nitidamente. Seu baile de quinze anos, a casa entulhada
de flores, o tio não medira esforços para apresentá-la como uma princesa.
Convidados e fazendeiros de toda região, eram recebidos à entrada – passando
pelo longo tapete de veludo, até atingirem o salão principal. Uma pequena
orquestra tocava ao fundo, Bruna corria de um lugar à outro, acolhendo as
felicitações num longo soiré de rendas. Sentia-se adulta, os cabelos presos por grande fivela
de strass; o ar severo e as sobrancelhas fartas emprestavam ao rosto
adolescente, uma suave precocidade.
A
valsa e seus rodopios, Aurélia que estivera o dia todo fechada numa estranha
concha de isolado despeito, dançava ao som dos violinos, sorrindo, contagiada
pelo brilho da festa.
Fernando,
alto demais para seus dezesseis anos, destacava-se no salão, fingindo estar
encantado. Bruna ficou a segui-lo com o olhar divertido, vendo-o trocar o
temperamento selvagem e as vestimentas rudes, pelo traje antiquado e maneiras
cordiais.
Seus
olhares se cruzaram, Fernando fez-lhe uma mesura engraçada, os olhos azuis faiscando.
Bruna veio ao seu encontro, convidando-o a dançar:
--
Venha nos divertir um pouco Fernando, a festa está muito formal! – riu-se.
Os
corpos embriagados pelo ritmo do jazz, o salão resplandecente na madrugada, os
garçons bocejando furtivos. Fernando a conduzindo desajeitado, os dois rindo em
desatino, a respiração aguçada pela proximidade atroz. Ele sugeriu que fossem
ao jardim, queria falar-lhe. Então, fragilizou-se – confessou que sempre a
amara, o rosto imberbe repentinamente grave. Bruna descobriu-se a desejá-lo,
seus dedos tocaram os cabelos revoltos do rapaz, beijaram-se.
O
romance durou pouco mais que um mês, logo a vida real os chamava para
compromissos inadiáveis: Bruna voltava à escola na capital, e Fernando foi
mandado ao Colégio Militar preparatório, que exigia-lhe esforços disciplinados.
* * * *
Bruna
assustou-se. Esquecera quase por completo o amor juvenil tão intenso – até
aquele dia. Esqueci ou fingir esquecer? perguntou-se. Aurélia discorria
excitada, as veias azuis transparentes nas mãos nervosas remexendo as gavetas
do toucador:
--
Hein, Bruna? O que devo fazer, diga? Quero conquistá-lo definitivamente . E só terei um mês para isso antes que ele
parta!
Bruna
estava preocupada. Conhecia o caráter obsessivo de Aurélia. Ela já estava
discursando há horas, tomada por uma paixão doentia cujo objeto era Fernando.
Tentou tranqüilizá-la:
--
Vou ajudá-la sim, mas não posso lhe dar uma receita infalível. Isso não existe!
Mas não fique tão agitada Aurélia. No amor, às vezes, as coisas acontecem
devagar...
Aurélia
replicou-a aflita:
--
Mas não há tempo, criatura! Ele volta à São Paulo em um mês e pouco, já disse.
Sua voz era aguda, imperativa; os olhos fixos e muito abertos refletiam uma
tempestade interna.
Bateu
com os punhos no toucador, os lábios apertados numa expressão raivosa:
repetindo cada vez mais alto:
--
E eu o quero prá mim de qualquer jeito. Quero que ele seja meu, entende? Que
seja meu!
Sim,
entendia – refletiu Bruna atordoada. A prima continuava a menina mimada e sem
limites, debruçada sobre seus caprichos e ordenando a todos que os realizassem
a qualquer custo. Não tinha parâmetros para circunstâncias reais e nem se
preocupava em descobri-las.
O mundo era um brinquedo – que ela manuseava distraída,
adaptando-o as suas conveniências.
Não
havia o que dizer nessas ocasiões, Bruna o sabia. Conselhos ou preleções sobre
os fatos de nada serviriam, a não ser atiçar a fúria asmática da prima.
A
temporada na fazenda prometia, Bruna resignou-se. Aurélia não lhe daria um só
dia de descanso, com as conversas intermináveis que girariam sobre o mesmo
assunto: Fernando.
Bruna
temia por ela. Lembrava-se bem do último romance da prima: um leve namorico com
um fazendeiro local se transformara em uma aflição para todos: Aurélia
dissecara o assunto compulsivamente durante um ano, teve uma grave depressão, e
chegou a ensaiar um suicídio, tomando uma dose exagerada de sedativos.
Naquela
mesma tarde Aurélia telefonou a Fernando, afetando maneiras casuais: “tem
compromisso para a noite?”, Bruna também havia chegado para as férias
comentou,” não quer se juntar a nós para um carteado? ”
Daquele
dia em diante, Fernando passou a freqüentar a casa todos os dias. Chegava
sempre ao entardecer montado num alazão, cavalgando livre pelos campos, feliz
por estar de volta ao lugar aonde crescera, cercado dos rostos familiares de
sua infância. O rapaz mostrava-se sempre afetuoso e descontraído com as moças,
e os três pareciam ter voltado ao tempo de sua mesmice, quando inseparáveis,
partilhavam jogos e descobertas.
Aurélia,
movida pela paixão que a consumia, perfumava-se para esperá-lo, cacheava os
cabelos, gastava-se experimentando roupas – combinando brincos. Bruna vestia-se
rusticamente, cavalgava arredia, participava dos jogos ausentando-se com freqüência.
Sabia-se um instrumento para a conquista de Aurélia e não desejava aguçar a
atenção de Fernando – que a perseguia com olhos enternecidos a cada movimento.
Aurélia,
enleada em seu devaneio, nada percebia – e cada gesto de delicadeza fraterna
por parte do rapaz – era interpretado como prenúncio de amor.
--
Você viu Bruna, como ele está se chegando a mim? Exultava.
Bruna recolhia-se temerosa,
aconselhava Aurélia chamando-a a razão, tivesse calma, o tempo era senhor de
tudo. Em vão. Aurélia
estava tomada de um frenesi obstinado, emagrecia a olhos vistos, passava as
noites em claro armando estratégias romanescas para sua conquista. Anotava
frases de efeito, escrevia mensagens e poemas ao rapaz – que rasgava logo em
seguida, em busca da declaração perfeita.
Bruna
comunicou sua preocupação aos tios, não queria alarmá-los, mas Aurélia andava
sem fome e não dormia bem. Não seria o caso de chamar Dr. Getulio, só por
desencargo? Uma consulta de rotina hein, tio? Os tios tranqüilizaram: já haviam
percebido e também se preocupavam. O médico já fora notificado – estava de
férias nas montanhas, mas retornaria em poucos dias para ver Aurélia e
aconselhá-los.
--
Mas não se aflija minha filha – disse a tia. Em breve o médico virá, e quando você
e Fernando voltarem à capital vamos dar um jeito de distraí-la. Comentamos a
possibilidade de uma temporada fora e ela se mostrou muito contente. Tudo vai
ficar bem!
* * * * * * * * * *
As
férias chegavam ao fim, Bruna antecipava sua volta à escola com um certo
alívio. As coisas estavam sob controle, suspirou. Preparava-se para o banho,
lixando as unhas concentrada, quando Aurélia interrompeu pelo quarto, o rosto
afogueado, os olhos brilhantes:
--
Bruna, adivinhe! Acho que “ ele” vai se declarar hoje. Telefonei para
convidá-lo a uma partida de gamão à noite, e ele concordou . estava com a voz
séria, disse que precisava falar comigo.
Pulava
de contentamento, na certeza da declaração de amor que Fernando lhe faria.
* * * * * * * * *
Ainda
não. Abriu as pálpebras dormentes na escuridão do quarto aos rumores da casa
haviam cessado. Levantou-se lentamente, como se um peso interior a sufocasse.
Buscou na mesinha os cigarros, o faiscar abrupto do isqueiro romperam as sombras,
num presságio. Afastou as cortinas e deparou-se com o pátio cintilante sob o
luar.
As
imagens pálidas se revelavam aos poucos, fragmentadas pelo desejo de
esquecê-las. Os fantasmas estavam de volta.
* * * * * * * *
...
Aurélia estivera todo o dia suspensa por uma espécie de febril encantamento,
sertã de que àquela noite, Fernando is se declarar. A habitual escolha do traje
havia recaído sobre um leve vestido branco, que lhe davam um aspecto diáfano e
pueril.
Bruna
torcia para que seus delírios se tornassem realidade, amava a prima
sinceramente – temia que um súbito corte em seus planos se transformasse em
nova depressão. Mas no íntimo, pressentia que os sentimentos de Fernando para
com ela eram idênticos aos seus – uma zelosa piedade.
Naquela
noite, Fernando chegou quase às nove horas, um imprevisto o tinha retardado,
desculpou-se antes mesmo de desmontar. Bruna assistia à sua chegada recolhida
em seu quarto, esquivando-se rente à vidraça, encoberta pela penumbra. A noite
estava clara, um ar cálido soprava entre as folhagens, as estrelas pareciam
aumentadas e vigilantes.
O
rapaz deu um tapinha no dorso do cavalo, para que o animal se largasse na
relva. Aurélia o esperava ao alpendre, disfarçando a ansiedade num sorriso
débil. Fernando caminhou em direção a ela, tomou-lhe o braço e afagou-a com o
olhar – como se faz a um bichinho, um poodle insistente que venha nos receber.
Guiado
por um comando invisível, o rapaz relanceou um olhar à sua janela, e Aurélia
acompanhou-lhe o gesto. Bruna quis refugiar-se a visão do jovem casal, mas foi
surpreendida pela voz escarpada da prima:
--
Desça Bruna, venha conversar com a gente!
O
pedido era um evidente recado. Aurélia sentia-se insegura, e a presença
protetora de Bruna a acalmava.
--
Não me sinto bem – respondeu-lhe debruçada a janela – Vou ler um pouco, não
reparem...
Cumprimentou
Fernando com um aceno amável e recuou, decidida a permanecer no quarto.
--
Venha Bruna! – a voz do rapaz era uma ordem. Continuou: - Ou iremos até aí. Não
pense que às vésperas de sua partida, vai se livrar de nós assim tão fácil!
Dizendo-lhe
isso, sorriu cúmplice para ela, indicando Aurélia com um trejeito de olhar, que
significava não querer ficar a sós com ela. Bruna abominava essa situação.
Desde menina, quando fora morar com os tios, sentia-se um joguete – solicitada
e imprensada às necessidades de Aurélia. E como se não bastasse ser o pilar das
fragilidades da prima, tinha que desempenhar o mesmo papel em relação às
pessoas que Aurélia espicaçava.
Reviu
Fernando menino, exasperado e aflito pedindo-lhe socorro, os boizinhos de
brinquedo pisoteados:
--
Bruna, olha a Aurélia aqui: vem dar um jeito nela!
* * * * * * * *
-- Que jeito? –
disse para si. Vestiu um sobretudo e foi unir-se a eles.
A
noite decorreu como de costume , o carteado após a conversa na varanda, os
refrescos alaranjados servidos pela tia. Fernando mantinha-se jovial e falante,
mas uma vaga preocupação era visível em seu rosto.
As
horas avançavam rápidas, dirigiram-se a certa altura ao jardim. Bruna estava
sonolenta, ensaiou despedir-se para dormir, mas foi contida por Fernando:
--
Só mais um pouco Bruna, também vou me recolher. Antes, gostaria de conversar
com Aurélia sobre algumas coisas e gostaria que você estivesse presente.
Em
seguida, como que para ganhar tempo, adiantou-se a recolher o cavalo atando-o a
uma árvore próxima. Pigarreou, apalpando-os em busca de algo. Ficou relutante,
de pé sobre o gramado, as moças constrangidas à espera.
--
Acho que deixei meus cigarros lá dentro – falou, dirigindo-se a Aurélia.
--
Vou buscar – disse ela num salto, correndo em direção a casa.
O
rapaz seguiu-a com o olhar e assim que ela se afastou, confidenciou à outra:
--
Escute Bruna, tenho tentado lhe falar a sós há algum tempo.
Vacilou,
confuso, procurando as palavras:
-- Parece que as
coisas estão tomando um rumo anh ... diferente. Não quero parecer pretensioso,
mas tenho notado a crescente fixação de Aurélia por mim. Você sabe que a estimo
como a uma irmã. Pigarreou, tirando da fronte, uma mecha de cabelo insistente,
e repetiu : Aurélia para mim,
é como uma irmã...nada mais.
Bruna
o ouvia consternada, adivinhando-lhe as palavras, e em seu íntimo já as sonhara
mil vêzes: via-se em devaneios, a afagando-lhe os cabelos rebeldes, tateando
seu rosto com os dedos trêmulos de
emoção, os olhos fechados enquanto suas bocas se uniam, enlaçados num abraço há
muito desejado. Embora lutasse contra esse amor nascido de forma tão tímida e
reprimida, não havia mais como negá-lo. Amava Fernando e não importava o resto. Queria amá-lo, exaurir
essa paixão em gestos, palavras, carinhos, e mais o que houvesse...Podiam
fugir, se encontrar na cidade para poupar Aurélia, mas queria-o tanto que
tremia. Fernando continuava a falar, e Bruna mal o ouvia, os olhos em seus olhos estavam tristes, mas o
semblante decidido:
--
Não quero magoá-la, nós dois sabemos o quanto ela é frágil. Mas também não
quero que ela alimente idéias a meu respeito. Vim esta noite, decidido a esclarecer
tudo. Pensei em falar com ela – com muito tato, é claro – sobre meus
verdadeiros sentimentos...
Como
ela permanecesse calada, perguntou-lhe:
--
O que você acha, Bruna? Será que pode me ajudar?
Bruna
olhava para ele, não sabendo o que dizer. Sentia naquele momento, a forte
atração que sempre os unira, lamentando intimamente, a paixão descabida de
Aurélia – fazendo-os recuar diante dos próprios sentimentos. O rosto contido do
rapaz também denunciava o desejo oculto. Ficaram a se olhar por alguns minutos
como se o tempo e os empecilhos não existissem – inebriados e atentos a
presença um do outro.
Bruna
tentava desvencilhar-se dessa revelação muda em que ambos se quedavam; o rosto
fixado nele, hipnotizada e temerosa. Fez um movimento em retirada, mas o rapaz
segurou-lhe o braço. Os olhos azuis a perscrutavam sedentos:
--
Há mais uma coisa que desejo dizer-lhe: não fuja, Bruna, sei que você sente o
mesmo! Amo-a como nunca amei ninguém, eu a quis durante todo esse tempo em que
estivemos distantes. E se me fiz tão presente aqui durante esses dias, foi para
tê-la perto, revelar o que sinto.
Bruna
sentiu-se tragada por um folhetim irreal, dividida entre o impulso de atirar-se
em seus braços e o muro erguido por Aurélia, que a impedia de amá-lo declaradamente. Absorvidos pela emoção que os
tomava, flutuavam esquecidos do resto do mundo, e lançaram-se a um beijo aflito
e crescente, com a febre dos que amam pela primeira vez. Desvencilharam-se
quando um gemido abafado despertou-os.
Aurélia
estava parada a alguns metros, encoberta pelas sombras da figueira enramada.
Fitava-os com os olhos muito abertos, o rosto contraído numa máscara dolorosa.
Avançou sobre eles em fúria insana, os punhos cerrados desferindo golpes
enquanto gritava:
--
Eu odeio vocês, odeio! Quero que vocês morram, estão me ouvindo? Quero que
vocês morram!
Chorava
ruidosamente, e a um só movimento, desatrelou
o cavalo, saltou sobre ele, e saiu em precipitada fuga, açoitando o
animal que trotava desorientado.
Fernando
ainda tentou detê-la, mas nada pode fazer, a cena se desenrolara num segundo.
Bruna estava imobilizada, o rosto ardia pela bofetada desferida, as lágrimas
escorriam cegando-a.
Refeitos
da surpresa que os devastara, saíram correndo em direção ao caminho tomado por
Aurélia. Inútil, seu vulto desaparecia entre as fileiras do milharal, o alazão
relinchando veloz.
Guiados
pelos ruídos do tropel desenfreado, prosseguiram ofegantes a perseguição. As
mãos frias de suor se encontraram, pararam um instante para recuperar o fôlego.
Fernando amparou Bruna que se desequilibrava, ouviu-lhe a respiração
lancinante, quis prolongar em um segundo a pausa. Bruna puxou-o pelas mãos com
firmeza, incitando-o a continuarem a corrida. Temos que deter Aurélia, disse.
Naquele momento, já adivinhava o
pesadelo que cairia sobre eles.
Deixaram
para trás o milharal, e ao penetrarem na campina enluarada, viram o cavalo
parado às margens do rio. Aurélia avançava como sonâmbula pelas águas
profundas, já alcançando a correnteza voraz das cheias. As chuvas de verão
tinham sido intensas naquele ano, o rio se avolumava transbordado de seu leito.
--
Fique aqui, vou pegá-la – disse Fernando lançando-se às águas.
Bruna
viu o corpo da prima sendo tragado como um graveto, os cabelos submergindo, dourados
á luz da noite. Fernando nadava furiosamente, tentando salvá-la a todo custo.O
rio era agora um túnel negro e feroz, disparado como uma locomotiva improvável,
sem se deter a seus apelos.
Bruna sentara-se a uma pedra, suas pernas não
mais a sustinham, o olhar vagava extático, o raciocínio embotado pelo choque.
Gritou ainda, horrorizada pela imagem de Fernando sendo tragado pelo negrume
que se encerrava.
Agora,
a claridade da lua cheia iluminava a superfície do rio sem nenhuma mácula, o
rapaz e a prima não eram mais visíveis, talvez a corredeira os tivesse levado
mais abaixo. Um pensamento lhe ocorreu no estorpor que a dominava: ia voltar à
fazenda e pedir ajuda, daria tempo?
Olhou
o relógio da parede num gesto automático: meia noite em ponto.
Correu com os espinhos rasgando-lhe
a pele, implorando e soluçando ao vento , a alma dilacerada, os pés sulcando a terra na esperança do tempo
que se perdia. Depois lembrava-se de si mesma, como mera espectadora, chegando
ao casarão aos gritos, desgrenhada e
ferida, e as vozes ao seu encontro. Então, tudo que se seguiu mergulhava
em sombras.
...
No dia seguinte, ao alvorecer, as buscas de salvamento encontraram dois corpos.
Aurélia tinha o semblante de quem dormia, estava fria e luminosa,e as mão
náufragas agarradas ao suéter do rapaz, como algemas . Nem mesmo o
capataz forte , que içara para a
margem do rio os corpos encontrados e acostumado a lida com os bois da fazenda,
tinha sido capaz de desprender os dedos frágeis de Aurélia dos braços hirtos de
Fernando. Este, tinha o semblante paralisado numa máscara de horror e surpresa,
como se a morte afinal, o tivesse vencido
numa casualidade traiçoeira.
* * * * * * * * *
Bruna
emergiu de seu pesadelo, o relógio cuco batia insensível a hora desolada, as
badaladas ecoando pelo casarão da fazenda. Fechou os olhos em pânico, tampando
os ouvidos ao soar do bronze, não havia saída. Meia noite outra vez. Deixou-se
cair extenuada no assento do toucador. O riso histérico de Aurélia foi crescendo,
a voz irônica e estridente emanava do fundo do espelho:
--
Eu o quero prá mim de qualquer jeito. Quero que ele seja meu, entende? Que seja
meu!