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terça-feira, 4 de junho de 2013

O PESCADOR DE ALMAS...(CONTO / Gênero: Fantástico)



Arte by Anakim Infinity Cosmic

“O Pescador de Almas”
                                                                 (Suian Moreira)

                        Olhou o relógio de cabeceira: três horas da manhã. As têmporas latejavam no esforço  de dormir, o corpo reclamava a insistência do repouso, não havia meios de adormecer. Há meses a insônia se concretizando – primeiro uma noite mal dormida, cochilos rápidos  estremecidos e irregulares, e então desde o fim do outono não conseguia ‘sequer uma soneca’. O médico receitara atividades repousantes ao fim do dia. Banho morno, leite morno, tudo morno. Insosso. Como sua própria vida, empacada e lenta. Os dias se passando enrodilhados e mudos, feitos cobra na atenção do bote que nunca acontecia.

                        Acordava cedo na esperança de cansar-se, enfrentava voraz a dura lida na fazenda; pegava na enxada como se ela própria fosse “agregada” e não patroa. Alimentava os animais, estercava as terras, tangia bezerros, amealhava cabras.

                        À noite, o dorso em brasas, o corpo exange, recolhia-se ao asseio de banhos com pétalas de rosas e ervas. A velha curandeira de Monte Alto lhe assegurara ser o bálsamo perfeito para uma longa noite de sono. Ah, uma longa noite de sono! – repetiu para si... e a menção dessas simples palavras parecia remetê-la a um milagre longínquo... Logo ela, cuja fama de boa dormideira atiçava piadas entre os mais jovens na família! Diziam que ela era capaz de dormir sentada sobre um formigueiro; e não foram raras às vezes em que era flagrada após os almoços festivos de domingo, roncando indiscreta recostada ao alpendre. Cochilos grossos, compridos – enquanto todos tagarelavam a sua volta.

                        Mas há tanto tempo os almoços tinham cessado! Não sabia bem porque, talvez nem mesmo houvesse um motivo. Os filhos haviam partido na ânsia de tocar a própria vida, foram saindo e levando com eles o trânsito de primos e amigos que se reuniam para os churrascos e fins de semana no campo. O mais velho estudando no exterior, pós-graduação na Inglaterra, sempre fora obstinado. Milena andava por aí; mochila nas costas, trabalhando com “produção”. Não entendia bem o trabalho da filha, morando em vários lugares ao mesmo tempo, jeans apertado, cara lavada, quatro brincos em cada orelha. Coisas do modernismo.



                        Sérgio, o caçula era... bem, Sérgio era Sérgio. Tímido e misterioso, ainda a visitava com certa regularidade. Mesmo assim, ultimamente quase não aparecia. Viera na Páscoa, sempre o olhar ausente, desligado de tudo. Vivia em São Paulo à custa de polpuda mesada, e sempre grudado naquele tal de Otávio – nunca vira amizade assim – andavam juntos feitos siameses há bem uns dois anos. E não é que o tal sujeito até se parecia com ele? Ambos jovens, meios aéreos, cabeludos e bem vestidos. Conversavam muito sobre arte e amenidades, e tratavam um contínuo diálogo de olhares e sorrisos, que ela própria já surpreendera em várias ocasiões. Coisa esquisita! Formariam um casal? Não, não, sacudiu o pensamento amorfo. Nada disso, eram amigos. Modernismos, só isso...

                           *                                            *                                       * 

                        Tantas lembranças! E agora, a casa vazia. A noite enorme, maior a cada dia.

                        Levantou-se da cama devagar, como se para não afugentar as imagens de dias mais felizes. A solidão dos corredores trouxe-lhe de volta uma antiga idéia: não era obrigada a permanecer ali, afinal. Podia vender a fazenda, abrigar-se no Vilarejo; uma casa menor onde os espaços exíguos lhe dessem sensação acolhedora. Teria vizinhos, iria à quitanda, cortaria os cabelos no pequeno Salão de Belezas pintado de azul.

                        A pensão do marido morto era suficiente para si, e partilharia a venda das terras e animais entre os filhos. Sim, os filhos, aqueles ingratos. Que ficavam cada vez mais distantes, esquecidos dela e de seu amor subitamente vazio.

                        Dedicara sua vida e seus esforços em criá-los , cobri-los de mimos e atenção; e então no limiar da velhice. Dava-se conta de que seu espírito transbordava de carinhos e reminiscências que não podia partilhar. Não restara ninguém.

                        Olhou pela janela da cozinha o pasto vazio, os animais recolhidos, a lua minguante como um véu sobre a escuridão. Tudo era quietude deserta. A noite mal começava, o que iria fazer das horas intermináveis de insônia?

                        Comeria alguma coisa e leria os relatórios do Contador. E logo estaria a salvo, o amanhecer trazendo a peonada e os bichos barulhentos. Por era, comeria até sentir-se repleta, era urgente sufocar o imenso espaço aberto dentro dela, que ameaçava tornar-se um abismo. A idéia animou-a, abriu armários e geladeira em busca de um sabor perdido. Maldição, não fizera compras! Nada havia que a apetecesse; algumas batatas no cesto, uma jarra de leite, manteiga, pão e ovos. Era tudo. Alimentava-se frugalmente, e quase nunca havia com quem partilhar as refeições; por isso adiava as idas ao mercado. Penoso sair de Jipe até o Vilarejo, alojar as pesadas sacolas, descarregá-las depois, organizar tudo. Preguiça. Tanto trabalho para nada. As coisas estragavam no refrigerador, distribui-as por fim aos empregados; uma sopa noturna lhe bastava.

                        Mas aquela noite era diferente. Um furioso desejo de guloseimas, novidades gastronômicas a invadia. E nada que não fossem batatas, suspirou. No armário, uns poucos vidros de conservas e molhos. Mais ao fundo, descobriu por acaso, uma lata de sopa de ervilhas. Talvez servisse. Imaginou a sopa fumegante no prato, uma fatia de pão com bastante manteiga complementando. Seria perfeito!

                        Apressou-se a abrir a lata, pegando ao mesmo tempo o abridor e a panela para aquecê-la. Abriu-a com rápida destreza, inclinando a parte para a sopa escorrer.

          *                                                 *                                     *

                        Um súbito clarão ofuscou-lhe a vista, apertou os olhos, confusa, não havia sopa ali, as mãos batendo no fundo com força, talvez seu conteúdo fosse  muito espesso e estivesse colado ao fundo. Inútil, a lata estava vazia. Percebeu a estranheza de abrir uma lata, antes pesada, onde nada havia. A leveza do alumínio agora a aturdia. Talvez a lata estivesse cheia de ar, e ao abri-la, o ar escapara...

                        Mas o que era isso? Estava ficando caduca com essa história de ar pesado que foge? Onde já se viu tamanha bobagem? Ia sim, ao mercadinho reclamar i prejuízo. Bem se via  que esse negócio de comida enlatada não funcionava. Modernismos. Melhor pensar em  outra refeição, obstinou-se. Não adiantava reclamar, iam pensar que era conversa de velha pão dura. Levar à cidade uma lata vazia para criar encrenca...

                        Ia jogando fora o recipiente oco, e de repente, uma espiral enfumaçada começou a formar-se acima da tampa aberta, um fio gasoso e volátil nascido no interior da lata, desenhava anéis nebulosos que se multiplicavam rapidamente.

                        A mulher assustou-se, recuou estremecida e soltou a lata, que para seu espanto, não caiu – sustentou-se fantasmagórica no ar, o brilho do alumínio ofuscado por estranha luz.

                        Era inacreditável! Esfregou os olhos convencida de estar sendo tomada por uma espécie de alucinação, mas a visão da lata flutuante parecia tão real quanto ela própria, e uma imagem surreal começava a formar-se dos elos de fumaça. 

                        Petrificada, a fazendeira assistia ao nascimento de um ser, cujos contornos se apresentavam já consistentes. E de pé em sua cozinha.

                        Cambaleante a mulher retrocedeu até a porta limiar entre a cozinha e o pasto, uma fuga para o espaço aberto lhe aclamaria os sentidos. Mas as pernas duras e geladas não se decidiam, temerosas de se perderem em seus próprios passos. O coração pulsava acima dos seus limites, e a fazendeira descobriu que penetrava num mundo desconhecido, materializado em sua cozinha pela estranha presença.

                        Ver o inexistente seria o mesmo que acreditar que existisse? E se aquilo tudo não passasse de um sonho? Talvez não estivesse ali assistindo aquele bizarro espetáculo – e sim em sua cama, dormindo profundamente, sob o efeito do chá de ervas. Colhera as ervas erradas, e era sabido na roça que certas folhas forneciam visões poderosas e obsediantes.

                          -- Mas não tomara chá algum, lembrou-se...

                             *                                 *                                *

                        Foi arrebatada de suas divagações por um zumbido quase inaudível. A forma diante dela continuava a nascer entre a bruma tênue, um iota delineado em lilás, sem braços ou pernas, e algo conectado ao corpo (corpo?) como uma lisa e grande cabeça. A mulher não se movia, esgazeada e atônita, tentando decifrar o que não existia.

                        Um rosto plasmava-se devagar, dando à esquiva criatura, um ar solene e severo. A coisa toda parecia fluídica, composta de matéria leve e vibrante. Apenas o rosto, branco e pastoso parecia destoar do resto; e a  fazendeira recordou-se dos bonecos de barro modelados na infância – que mesmo prontos e secos ao sol, pareciam sempre inacabados.

                        As pálpebras úmidas de atenção moviam-se lentas em direção ao Iota. Um longo tempo ficou a olhá-lo, idiotizada, até que ouviu, interiormente – sem nenhum ruído ou palavra – o que a criatura lhe dizia:

                        - Não tenha medo, não lhe farei mal algum.

                        Ela estacou aparvalhada, e sem voz, interpelou-o:
                        -- O que é você? Uma assombração? O que quer de mim?

                     E só então, se deu conta que, ao pronunciar essas palavras, seu medo cessara. Como torneira de um jorro incessante, fechada a um só movimento, ela percebeu-se consciente de que aquela era a sua casa, e nada ali deveria assustá-la. Acostumada aos reveses da vida agreste, assumira o comando de tudo desde a viuvez, ainda moça. Não seria agora, trinta anos mais tarde, uma assombração de meia tigela a fazê-la de boba.

                      Relançou um gesto em direção ao rifle carregado, mantido atrás da porta para imprevistos desagradáveis. Não chegou sequer a mover-se, um facho de luz interceptou-a com uma vaga sensação de dormência.

               A mulher desejou ardentemente que “aquilo” se assemelhasse a algo humano, então talvez pudesse inquiri-lo como um igual. No exato instante em que seu desejo se completou, viu a aparição transmutar-se lentamente – adquirindo a forma de um homenzinho robusto, de feições agradáveis e vestes  sacerdotais. À primeira vista, assemelhava-se a um monge ligeiramente obeso e pouco a vontade.
                        
                    *                                            *                                              *


                        A coisa não parava de surpreendê-la, a fazendeira feroz e alerta, balbuciou  mudamente:

                            -- Vá-se embora, demônio! Não tenho medo de você.

                        O homenzinho começou a movimentar-se naturalmente, apalpando surpreso, o novo corpo. Disse em voz cordial:

                        -- Bem, bem... – iniciou – Sob essa forma será mais fácil negociarmos – Apontou para o rifle e continuou:

                        - Se isso a fizer mais tranqüila, pode segurar sua máquina de defesa.
                          Durante um segundo a mulher  contorceu as mãos,

nervosamente. Depois, riu desconcertada, aquilo tudo era um delírio.
 A solidão, afinal tinha feito o seu trabalho: comera-lhe o cérebro!
                    O homenzinho estava a fitá-la, curioso e expectante. Parecia um vendedor astuto, temeroso de intimidar seu cliente:

                   -- Sente-se bem, senhora? Peço-lhe desculpas se a assustei. Não pretendia causar-lhe nenhum constrangimento. Fez uma reverência desajeitada, balbuciando:

                        - Por favor...minhas desculpas...

                        “Pelo menos era educado”, pensou a mulher. Assustou-se com a firmeza de sua própria voz:

                        Quem é você? O que faz em minha casa?

                        O homem  parecia acossado, estendeu os braços gorduchos num gesto apaziguador, pedindo-lhe calma. Limpou a garganta, e um tanto nervoso, começou a explicar:
                        -- Como a senhora vê, não pertenço a esse mundo. – interrompeu-se afobado, como se lesse os pensamentos da mulher:

                        -- Não, não! Também não sou o espírito de alguém que viveu aqui.

                        E então, parecendo escolher as palavras para fazê-la entender, continuou:

                        -- Venho de longe, compreende?- Apontou o céu, e murmurou: De muito longe...

                        Lançou-lhe um olhar indulgente, esperando o efeito de suas palavras sobre ela. Como a fazendeira recuasse incrédula, adoçou a voz para não assustá-la:

                        - -Sim senhora! De um mundo bem distante e diferente deste. Mas não vim trazer-lhe aborrecimentos, esteja certa. Quero apenas conversar.

                        -- E o que quer de mim? – interrogou-o a mulher, num tom impiedoso e ríspido, perfeito para esconder o medo imenso.

                        -- Para ser sincero, só quero o que a senhora quiser. Veja bem: é o meu trabalho. Ando por aí (gesticulou girando o dedo apontando para o alto), requisitando almas para habitar meu mundo.

                        A mulher esforçava-se para entender. Arregalou os olhos, horrorizada, e retrucou:

                        -- Quer dizer que seqüestra gente para experiências ou sei lá o quê em... em seu mundo?

                        O visitante reagiu prontamente indignado:

                        -- Oh, não, não! De forma alguma, isso é muito antiquado! Não roubamos absolutamente nada, muito menos gente – enfatizou contrariado.

                        -- Então, então... não compreendo! – exclamou a anfitriã constrangida.

                        O viajante começou a discorrer em tom sedutor, os braços se movendo como se fizesse um discurso:

                        -- Vou explicar de modo bem simples para que a senhora possa entender: de onde eu venho, somos muito poucos. Nossa raça foi exterminada por problemas que fogem a sua compreensão, há milênios. Perscrutou o rosto de sua interlocutora e decidiu ser mais claro:

                        - Não sobrou quase ninguém, entende? Quase ninguém. Então, fomos capazes de nos transmutar e atravessar o tempo. Construímos milhares de equipamentos – ou corpos, como à senhora preferir. Muito parecidos à forma de luz que a senhora enxergou antes de me ver assim, com aparência humana...

                                  Pigarreou  e seu rosto adquirira entusiasmo:

                        -- Construímos ótimos equipamentos – continuou. Muito superiores a esse. Apontou a própria silhueta e desculpou-se:

                        -- Por favor, senhora, não se ofenda. Não pretendo depreciá-los, mas esse material é muito ruim. E não dura quase nada! Hãnh ... ainda que mal lhe pergunte, quanto tempo dura sua gente?

                                  A fazendeira fez um muxoxo, calculando:

                                - Setenta, oitenta anos. Um pouco mais, um pouco menos. Depende.

                                  O baixinho replicou agitado:

                       -- É muito pouco! Nossos equipamentos duram uma infinidade, posso garantir-lhe.

                        Coçou a cabeça e suspirou; parecia desanimado ao concluir:

                        -- Só tem um problema: não temos almas para habitá-los... Como à senhora vê, é um grave problema. Um grave problema!

                        Parecia preocupado, andava em círculos, as mãos para trás.

                        -- Entendo! – disse a mulher um tanto confusa, mas já apaziguada.

                        A criatura voltou-se para ela:

            --Como lhe disse, meu trabalho é bastante singular: ando por toda parte vendo se há alguém descontente... Aporrinhado, compreende?

                        Encostou os lábios numa careta:

                        - Nunca se sabe, não é? Alguém em pleno vigor, querendo trocar de equipamento... Meu mundo é um lugar muito aprazível, não temos confusões por lá.

                           Arrematou soturno:

                        -- A não ser, é claro, a falta de almas!

                  *                                          *                                               *

                        A fazendeira olhou o céu através da vidraça encardida de sua cozinha, contemplando as estrelas na vastidão infinita. E pela primeira vez, achou natural que houvesse mundos e formas de vida espalhados ali.Pois se em seu próprio quintal, existiam seres tão diversos como uma borboleta e uma vaca!

                        Movida pela curiosidade, interrogou o visitante sobre seu mundo, seus costumes, sua gente. O homenzinho parecia feliz por seu interesse, respondeu-lhe as perguntas com animada eloqüência e contando-lhe histórias fabulosas. Ao final da narrativa, vendo a crescente admiração da mulher, fez uma breve pausa e perguntou-lhe:

                        -- A senhora, por acaso, não gostaria de vir comigo?

          *                                                       *                                         *


                        Ela recuou surpresa. Sacudiu os ombros, limpou a garganta e sorriu, achando graça:

                        - Oh! Eu não poderia, tenho muito o que fazer por aqui. Minha vida é boa como está...(Ruborizou-se envergonhada, sabendo que mentia). Emendou:

                        -- Para lhe dizer a verdade, minha vida não anda assim tão boa. Tenho estado muito só, a velhice chegando, sabe como é... De qualquer modo, não poderia ir a parte alguma. Não gosto de novidades – riu, se desculpando – e além do mais, sou bastante medrosa...

                        O homem deu um pequeno salto, parecendo infantilizado:

                     -- Não, não diga isso! A senhora é muito corajosa! Em geral, quando me apresento, as pessoas desfalecem ou fingem estar malucas. Ignoram-me. Isso é muito constrangedor.

                        Espalmou as mãos em direção a ela, sorrindo amistoso:

             -- Mas a senhora é diferente: está aí firme! Uma alma grandiosa! Teria muitos amigos em meu mundo, e se me desse à honra de ser um deles...

                        A fazendeira sentiu-se subitamente envaidecida:

                        -- O senhor é muito gentil, mas mesmo assim não posso ir. Sinto muito.

                        E como num desabafo, falou-lhe dos filhos, dos animais e empregados que dependiam dela, do plano de vender as terras e mudar-se para o vilarejo, das noites insones, das contas a pagar, dos sentimentos guardados há tanto sem ninguém para dividir.

                        Ele ouvia sereno, recostado à pia, balançando a cabeça para indicar que compreendia.

                       Quando ela silenciou, o dia já despontava. O visitante tinha o rosto velado, era hora de partir. Durante aquela noite de confidências, uma singular amizade nascera entre eles, tornando penosa a despedida para ambos. A fazendeira ligou a máquina de café adiando o momento de dizer adeus. O visitante sacudiu os braços num gesto vencido, e cabisbaixo, despediu-se caminhando em direção à porta.

                     *                                        *                                    * 


                     A mulher penalizou-se, simpatizava com ele. Olhou a figura benevolente, trajado em manto de cor indefinida, e benzendo-se da heresia, comparou-o a Pedro – apóstolo de Cristo, também um pescador de almas. A máquina de café apitou interrompendo-lhe o pensamento. Teve uma idéia:

                        -- O senhor apreciaria uma refeição, antes de partir?

              O homenzinho estacou junto à porta, o semblante desanuviado:

                      -- Se a senhora não se importar, fico mais um pouco... Meu trabalho é um tanto solitário, compreende?

         Sentaram-se e comeram pão e ovos fritos, conversando como velhos amigos. A criatura estava feliz:

                   -- Líquido delicioso este! Como se chama?

                 -- Café  -  respondeu-lhe a fazendeira, servindo-lhe mais uma xícara.

           Também ela estava contente, era bom partilhar a solidão habitual com alguém. Sem dúvida, o ser do outro mundo era excelente companhia. Gostava de falar, ouvia com delicadeza, era inteligente e calmo. Tão raro alguém assim. Um bom amigo, considerou. E estava indo embora. Pensou uma forma de retê-lo:

                 -- Escute Senhor ..., como é mesmo seu nome?

               -- Pode me chamar como quiser – respondeu-lhe o homem.

                A fazendeira lembrou-se da comparação bíblica e continuou:

            -- Escute Sr. Pedro, talvez eu possa acompanhá-lo daqui a algum tempo. Depois de resolver as pendências, me preparar melhor... A vida da tantas voltas, não é mesmo? Pensando bem, já vivi tanto por aqui... Ando meio aporrinhada também. Quem sabe um lugar novo me renovasse as forças hein? Só tenho uma exigência: que o Senhor permaneça aqui enquanto isso, para eu conhecê-lo direito – saber mais sobre o seu mundo... me acostumar a idéia de partir.

                        Ele iluminou-se, perguntando animado:

              -- Acha mesmo possível? Não tenho pressa! Quanto tempo isso levaria?

               A mulher jogou a cartada final, temendo dar a resposta errada – mas não tinha mesmo nada a perder. Arriscou casual:

         -- Uns quinze a vinte anos, por aí.Um pouco mais , um pouco menos...

              O homenzinho olhou-a espantado, e respondeu exultante:

              --  Só isso?  
             E dando um pequeno salto de alegria, exclamou :
            -- Fechado!