Arte by Anakim Infinity Cosmic |
“O Pescador de Almas”
(Suian Moreira)
Olhou
o relógio de cabeceira: três horas da manhã. As têmporas latejavam no
esforço de dormir, o corpo reclamava a
insistência do repouso, não havia meios de adormecer. Há meses a insônia se
concretizando – primeiro uma noite mal dormida, cochilos rápidos estremecidos e irregulares, e então desde o
fim do outono não conseguia ‘sequer uma soneca’. O médico receitara atividades
repousantes ao fim do dia. Banho morno, leite morno, tudo morno. Insosso. Como
sua própria vida, empacada e lenta. Os dias se passando enrodilhados e mudos,
feitos cobra na atenção do bote que nunca acontecia.
Acordava
cedo na esperança de cansar-se, enfrentava voraz a dura lida na fazenda; pegava
na enxada como se ela própria fosse “agregada” e não patroa. Alimentava os
animais, estercava as terras, tangia bezerros, amealhava cabras.
À
noite, o dorso em brasas, o corpo exange, recolhia-se ao asseio de banhos com
pétalas de rosas e ervas. A velha curandeira de Monte Alto lhe assegurara ser o
bálsamo perfeito para uma longa noite de sono. Ah, uma longa noite de sono! –
repetiu para si... e a menção dessas simples palavras parecia remetê-la a um
milagre longínquo... Logo ela, cuja fama de boa dormideira atiçava piadas entre
os mais jovens na família! Diziam que ela era capaz de dormir sentada sobre um
formigueiro; e não foram raras às vezes em que era flagrada após os almoços
festivos de domingo, roncando indiscreta recostada ao alpendre. Cochilos grossos,
compridos – enquanto todos tagarelavam a sua volta.
Mas
há tanto tempo os almoços tinham cessado! Não sabia bem porque, talvez nem
mesmo houvesse um motivo. Os filhos haviam partido na ânsia de tocar a própria
vida, foram saindo e levando com eles o trânsito de primos e amigos que se
reuniam para os churrascos e fins de semana no campo. O mais velho estudando no
exterior, pós-graduação na Inglaterra, sempre fora obstinado. Milena andava por
aí; mochila nas costas, trabalhando com “produção”. Não entendia bem o trabalho
da filha, morando em vários lugares ao mesmo tempo, jeans apertado, cara
lavada, quatro brincos em cada orelha. Coisas do modernismo.
Sérgio,
o caçula era... bem, Sérgio era Sérgio. Tímido e misterioso, ainda a visitava
com certa regularidade. Mesmo assim, ultimamente quase não aparecia. Viera na
Páscoa, sempre o olhar ausente, desligado de tudo. Vivia em São Paulo à custa de
polpuda mesada, e sempre grudado naquele tal de Otávio – nunca vira amizade
assim – andavam juntos feitos siameses há bem uns dois anos. E não é que o tal
sujeito até se parecia com ele? Ambos jovens, meios aéreos, cabeludos e bem
vestidos. Conversavam muito sobre arte e amenidades, e tratavam um contínuo
diálogo de olhares e sorrisos, que ela própria já surpreendera em várias
ocasiões. Coisa esquisita! Formariam um casal? Não, não, sacudiu o pensamento
amorfo. Nada disso, eram amigos. Modernismos, só isso...
* * *
* * *
Tantas
lembranças! E agora, a casa vazia. A noite enorme, maior a cada dia.
Levantou-se
da cama devagar, como se para não afugentar as imagens de dias mais felizes. A
solidão dos corredores trouxe-lhe de volta uma antiga idéia: não era obrigada a
permanecer ali, afinal. Podia vender a fazenda, abrigar-se no Vilarejo; uma
casa menor onde os espaços exíguos lhe dessem sensação acolhedora. Teria
vizinhos, iria à quitanda, cortaria os cabelos no pequeno Salão de Belezas
pintado de azul.
A
pensão do marido morto era suficiente para si, e partilharia a venda das terras
e animais entre os filhos. Sim, os filhos, aqueles ingratos. Que ficavam cada
vez mais distantes, esquecidos dela e de seu amor subitamente vazio.
Dedicara
sua vida e seus esforços em criá-los , cobri-los de mimos e atenção; e então no
limiar da velhice. Dava-se conta de que seu espírito transbordava de carinhos e
reminiscências que não podia partilhar. Não restara ninguém.
Olhou
pela janela da cozinha o pasto vazio, os animais recolhidos, a lua minguante
como um véu sobre a escuridão. Tudo era quietude deserta. A noite mal começava,
o que iria fazer das horas intermináveis de insônia?
Comeria
alguma coisa e leria os relatórios do Contador. E logo estaria a salvo, o
amanhecer trazendo a peonada e os bichos barulhentos. Por era, comeria até
sentir-se repleta, era urgente sufocar o imenso espaço aberto dentro dela, que
ameaçava tornar-se um abismo. A idéia animou-a, abriu armários e geladeira em
busca de um sabor perdido. Maldição, não fizera compras! Nada havia que a
apetecesse; algumas batatas no cesto, uma jarra de leite, manteiga, pão e ovos.
Era tudo. Alimentava-se frugalmente, e quase nunca havia com quem partilhar as
refeições; por isso adiava as idas ao mercado. Penoso sair de Jipe até o
Vilarejo, alojar as pesadas sacolas, descarregá-las depois, organizar tudo.
Preguiça. Tanto trabalho para nada. As coisas estragavam no refrigerador,
distribui-as por fim aos empregados; uma sopa noturna lhe bastava.
Mas
aquela noite era diferente. Um furioso desejo de guloseimas, novidades
gastronômicas a invadia. E nada que não fossem batatas, suspirou. No armário,
uns poucos vidros de conservas e molhos. Mais ao fundo, descobriu por acaso,
uma lata de sopa de ervilhas. Talvez servisse. Imaginou a sopa fumegante no
prato, uma fatia de pão com bastante manteiga complementando. Seria perfeito!
Apressou-se
a abrir a lata, pegando ao mesmo tempo o abridor e a panela para aquecê-la.
Abriu-a com rápida destreza, inclinando a parte para a sopa escorrer.
* * *
* * *
Um
súbito clarão ofuscou-lhe a vista, apertou os olhos, confusa, não havia sopa
ali, as mãos batendo no fundo com força, talvez seu conteúdo fosse muito espesso e estivesse colado ao fundo.
Inútil, a lata estava vazia. Percebeu a estranheza de abrir uma lata, antes
pesada, onde nada havia. A leveza do alumínio agora a aturdia. Talvez a lata
estivesse cheia de ar, e ao abri-la, o ar escapara...
Mas
o que era isso? Estava ficando caduca com essa história de ar pesado que foge?
Onde já se viu tamanha bobagem? Ia sim, ao mercadinho reclamar i prejuízo. Bem
se via que esse negócio de comida
enlatada não funcionava. Modernismos. Melhor pensar em outra refeição, obstinou-se. Não adiantava
reclamar, iam pensar que era conversa de velha pão dura. Levar à cidade uma
lata vazia para criar encrenca...
Ia
jogando fora o recipiente oco, e de repente, uma espiral enfumaçada começou a
formar-se acima da tampa aberta, um fio gasoso e volátil nascido no interior da
lata, desenhava anéis nebulosos que se multiplicavam rapidamente.
A
mulher assustou-se, recuou estremecida e soltou a lata, que para seu espanto,
não caiu – sustentou-se fantasmagórica no ar, o brilho do alumínio ofuscado por
estranha luz.
Era
inacreditável! Esfregou os olhos convencida de estar sendo tomada por uma
espécie de alucinação, mas a visão da lata flutuante parecia tão real quanto
ela própria, e uma imagem surreal começava a formar-se dos elos de fumaça.
Petrificada,
a fazendeira assistia ao nascimento de um ser, cujos contornos se apresentavam
já consistentes. E de pé em sua cozinha.
Cambaleante
a mulher retrocedeu até a porta limiar entre a cozinha e o pasto, uma fuga para
o espaço aberto lhe aclamaria os sentidos. Mas as pernas duras e geladas não se
decidiam, temerosas de se perderem em seus próprios passos. O coração pulsava
acima dos seus limites, e a fazendeira descobriu que penetrava num mundo
desconhecido, materializado em sua cozinha pela estranha presença.
Ver
o inexistente seria o mesmo que acreditar que existisse? E se aquilo tudo não
passasse de um sonho? Talvez não estivesse ali assistindo aquele bizarro
espetáculo – e sim em sua cama, dormindo profundamente, sob o efeito do chá de
ervas. Colhera as ervas erradas, e era sabido na roça que certas folhas
forneciam visões poderosas e obsediantes.
--
Mas não tomara chá algum, lembrou-se...
* * *
* * *
Foi
arrebatada de suas divagações por um zumbido quase inaudível. A forma diante
dela continuava a nascer entre a bruma tênue, um iota delineado em lilás, sem
braços ou pernas, e algo conectado ao corpo (corpo?) como uma lisa e grande
cabeça. A mulher não se movia, esgazeada e atônita, tentando decifrar o que não
existia.
Um
rosto plasmava-se devagar, dando à esquiva criatura, um ar solene e severo. A
coisa toda parecia fluídica, composta de matéria leve e vibrante. Apenas o
rosto, branco e pastoso parecia destoar do resto; e a fazendeira recordou-se dos bonecos de barro
modelados na infância – que mesmo prontos e secos ao sol, pareciam sempre
inacabados.
As
pálpebras úmidas de atenção moviam-se lentas em direção ao Iota. Um longo tempo
ficou a olhá-lo, idiotizada, até que ouviu, interiormente – sem nenhum ruído ou
palavra – o que a criatura lhe dizia:
-
Não tenha medo, não lhe farei mal algum.
Ela
estacou aparvalhada, e sem voz, interpelou-o:
-- O que é você? Uma assombração? O que quer de mim?
-- O que é você? Uma assombração? O que quer de mim?
E
só então, se deu conta que, ao pronunciar essas palavras, seu medo cessara.
Como torneira de um jorro incessante, fechada a um só movimento, ela
percebeu-se consciente de que aquela era a sua casa, e nada ali deveria
assustá-la. Acostumada aos reveses da vida agreste, assumira o comando de tudo
desde a viuvez, ainda moça. Não seria agora, trinta anos mais tarde, uma
assombração de meia tigela a fazê-la de boba.
Relançou
um gesto em direção ao rifle carregado, mantido atrás da porta para imprevistos
desagradáveis. Não chegou sequer a mover-se, um facho de luz interceptou-a com
uma vaga sensação de dormência.
A
mulher desejou ardentemente que “aquilo” se assemelhasse a algo humano, então
talvez pudesse inquiri-lo como um igual. No exato instante em que seu desejo se
completou, viu a aparição transmutar-se lentamente – adquirindo a forma de um
homenzinho robusto, de feições agradáveis e vestes sacerdotais. À primeira vista, assemelhava-se
a um monge ligeiramente obeso e pouco a vontade.
* * *
A
coisa não parava de surpreendê-la, a fazendeira feroz e alerta, balbuciou mudamente:
--
Vá-se embora, demônio! Não tenho medo de você.
O
homenzinho começou a movimentar-se naturalmente, apalpando surpreso, o novo
corpo. Disse em voz cordial:
--
Bem, bem... – iniciou – Sob essa forma será mais fácil negociarmos – Apontou
para o rifle e continuou:
-
Se isso a fizer mais tranqüila, pode segurar sua máquina de defesa.
Durante
um segundo a mulher contorceu as mãos,nervosamente. Depois, riu desconcertada, aquilo tudo era um delírio.
A solidão, afinal tinha feito o seu trabalho: comera-lhe o cérebro!
O
homenzinho estava a fitá-la, curioso e expectante. Parecia um vendedor astuto,
temeroso de intimidar seu cliente:
--
Sente-se bem, senhora? Peço-lhe desculpas se a assustei. Não pretendia
causar-lhe nenhum constrangimento. Fez uma reverência desajeitada, balbuciando:
-
Por favor...minhas desculpas...
“Pelo
menos era educado”, pensou a mulher. Assustou-se com a firmeza de sua própria
voz:
Quem
é você? O que faz em minha casa?
O
homem parecia acossado, estendeu os
braços gorduchos num gesto apaziguador, pedindo-lhe calma. Limpou a garganta, e
um tanto nervoso, começou a explicar:
-- Como a senhora vê, não pertenço a esse mundo. – interrompeu-se afobado, como se lesse os pensamentos da mulher:
-- Como a senhora vê, não pertenço a esse mundo. – interrompeu-se afobado, como se lesse os pensamentos da mulher:
--
Não, não! Também não sou o espírito de alguém que viveu aqui.
E
então, parecendo escolher as palavras para fazê-la entender, continuou:
--
Venho de longe, compreende?- Apontou o céu, e murmurou: De muito longe...
Lançou-lhe
um olhar indulgente, esperando o efeito de suas palavras sobre ela. Como a
fazendeira recuasse incrédula, adoçou a voz para não assustá-la:
-
-Sim senhora! De um mundo bem distante e diferente deste. Mas não vim
trazer-lhe aborrecimentos, esteja certa. Quero apenas conversar.
--
E o que quer de mim? – interrogou-o a mulher, num tom impiedoso e ríspido,
perfeito para esconder o medo imenso.
--
Para ser sincero, só quero o que a senhora quiser. Veja bem: é o meu trabalho.
Ando por aí (gesticulou girando o dedo apontando para o alto), requisitando
almas para habitar meu mundo.
A
mulher esforçava-se para entender. Arregalou os olhos, horrorizada, e retrucou:
--
Quer dizer que seqüestra gente para experiências ou sei lá o quê em... em seu
mundo?
O
visitante reagiu prontamente indignado:
--
Oh, não, não! De forma alguma, isso é muito antiquado! Não roubamos
absolutamente nada, muito menos gente – enfatizou contrariado.
--
Então, então... não compreendo! – exclamou a anfitriã constrangida.
O
viajante começou a discorrer em tom sedutor, os braços se movendo como se
fizesse um discurso:
--
Vou explicar de modo bem simples para que a senhora possa entender: de onde eu
venho, somos muito poucos. Nossa raça foi exterminada por problemas que fogem a
sua compreensão, há milênios. Perscrutou o rosto de sua interlocutora e decidiu
ser mais claro:
-
Não sobrou quase ninguém, entende? Quase ninguém. Então, fomos capazes de nos
transmutar e atravessar o tempo. Construímos milhares de equipamentos – ou
corpos, como à senhora preferir. Muito parecidos à forma de luz que a senhora
enxergou antes de me ver assim, com aparência humana...
Pigarreou e seu rosto adquirira entusiasmo:
--
Construímos ótimos equipamentos – continuou. Muito superiores a esse. Apontou a
própria silhueta e desculpou-se:
--
Por favor, senhora, não se ofenda. Não pretendo depreciá-los, mas esse material
é muito ruim. E não dura quase nada! Hãnh ... ainda que mal lhe pergunte,
quanto tempo dura sua gente?
A
fazendeira fez um muxoxo, calculando:
-
Setenta, oitenta anos. Um pouco mais, um pouco menos. Depende.
O
baixinho replicou agitado:
--
É muito pouco! Nossos equipamentos duram uma infinidade, posso garantir-lhe.
Coçou
a cabeça e suspirou; parecia desanimado ao concluir:
--
Só tem um problema: não temos almas para habitá-los... Como à senhora vê, é um
grave problema. Um grave problema!
Parecia
preocupado, andava em círculos, as mãos para trás.
--
Entendo! – disse a mulher um tanto confusa, mas já apaziguada.
A
criatura voltou-se para ela:
--Como lhe disse, meu trabalho é
bastante singular: ando por toda parte vendo se há alguém descontente...
Aporrinhado, compreende?
Encostou
os lábios numa careta:
-
Nunca se sabe, não é? Alguém em pleno vigor, querendo trocar de equipamento...
Meu mundo é um lugar muito aprazível, não temos confusões por lá.
Arrematou
soturno:
--
A não ser, é claro, a falta de almas!
* * *
A
fazendeira olhou o céu através da vidraça encardida de sua cozinha,
contemplando as estrelas na vastidão infinita. E pela primeira vez, achou
natural que houvesse mundos e formas de vida espalhados ali.Pois se em seu próprio quintal,
existiam seres tão diversos como uma borboleta e uma vaca!
Movida
pela curiosidade, interrogou o visitante sobre seu mundo, seus costumes, sua
gente. O homenzinho parecia feliz por seu interesse, respondeu-lhe as perguntas
com animada eloqüência e contando-lhe histórias fabulosas. Ao final da
narrativa, vendo a crescente admiração da mulher, fez uma breve pausa e
perguntou-lhe:
--
A senhora, por acaso, não gostaria de vir comigo?
* * *
Ela
recuou surpresa. Sacudiu os ombros, limpou a garganta e sorriu, achando graça:
-
Oh! Eu não poderia, tenho muito o que fazer por aqui. Minha vida é boa como
está...(Ruborizou-se
envergonhada, sabendo que mentia). Emendou:
--
Para lhe dizer a verdade, minha vida não anda assim tão boa. Tenho estado muito
só, a velhice chegando, sabe como é... De qualquer modo, não poderia ir a parte
alguma. Não gosto de novidades – riu, se desculpando – e além do mais, sou
bastante medrosa...
O
homem deu um pequeno salto, parecendo infantilizado:
--
Não, não diga isso! A senhora é muito corajosa! Em geral, quando me apresento,
as pessoas desfalecem ou fingem estar malucas. Ignoram-me. Isso é muito
constrangedor.
Espalmou
as mãos em direção a ela, sorrindo amistoso:
--
Mas a senhora é diferente: está aí firme! Uma alma grandiosa! Teria muitos amigos em meu mundo,
e se me desse à honra de ser um deles...
A
fazendeira sentiu-se subitamente envaidecida:
--
O senhor é muito gentil, mas mesmo assim não posso ir. Sinto muito.
E
como num desabafo, falou-lhe dos filhos, dos animais e empregados que dependiam
dela, do plano de vender as terras e mudar-se para o vilarejo, das noites
insones, das contas a pagar, dos sentimentos guardados há tanto sem ninguém
para dividir.
Ele
ouvia sereno, recostado à pia, balançando a cabeça para indicar que
compreendia.
Quando
ela silenciou, o dia já despontava. O visitante tinha o rosto velado, era hora
de partir. Durante aquela noite de confidências, uma singular amizade nascera
entre eles, tornando penosa a despedida para ambos. A fazendeira ligou a
máquina de café adiando o momento de dizer adeus. O visitante sacudiu os braços
num gesto vencido, e cabisbaixo, despediu-se caminhando em direção à porta.
* * *
A
mulher penalizou-se, simpatizava com ele. Olhou a figura benevolente, trajado
em manto de cor indefinida, e benzendo-se da heresia, comparou-o a Pedro –
apóstolo de Cristo, também um pescador de almas. A máquina de café apitou
interrompendo-lhe o pensamento. Teve uma idéia:
--
O senhor apreciaria uma refeição, antes de partir?
O
homenzinho estacou junto à porta, o semblante desanuviado:
--
Se a senhora não se importar, fico mais um pouco... Meu trabalho é um tanto
solitário, compreende?
Sentaram-se
e comeram pão e ovos fritos, conversando como velhos amigos. A criatura estava
feliz:
--
Líquido delicioso este! Como se chama?
--
Café -
respondeu-lhe a fazendeira, servindo-lhe mais uma xícara.
Também
ela estava contente, era bom partilhar a solidão habitual com alguém. Sem
dúvida, o ser do outro mundo era excelente companhia. Gostava de falar, ouvia
com delicadeza, era inteligente e calmo. Tão raro alguém assim. Um bom amigo,
considerou. E estava indo embora. Pensou uma forma de retê-lo:
--
Escute Senhor ..., como é mesmo seu nome?
--
Pode me chamar como quiser – respondeu-lhe o homem.
A
fazendeira lembrou-se da comparação bíblica e continuou:
--
Escute Sr. Pedro, talvez eu possa acompanhá-lo daqui a algum tempo. Depois de
resolver as pendências, me preparar melhor... A vida da tantas voltas, não é
mesmo? Pensando bem, já vivi tanto por aqui... Ando meio aporrinhada também.
Quem sabe um lugar novo me renovasse as forças hein? Só tenho uma exigência:
que o Senhor permaneça aqui enquanto isso, para eu conhecê-lo direito – saber
mais sobre o seu mundo... me acostumar a idéia de partir.
Ele
iluminou-se, perguntando animado:
--
Acha mesmo possível? Não tenho pressa! Quanto tempo isso levaria?
A
mulher jogou a cartada final, temendo dar a resposta errada – mas não tinha
mesmo nada a perder. Arriscou casual:
--
Uns quinze a vinte anos, por aí.Um pouco mais , um pouco menos...
O
homenzinho olhou-a espantado, e respondeu exultante:
--
Só isso?
E dando um pequeno salto de alegria, exclamou :
-- Fechado!