“Emboscada”
(suian moreira)
)
A
tarde ia alta quando Rufino recebeu a visita do “Coroné”. O homem chegou
imponente em seu cavalo terroso, um jagunço de cada lado, a bocarra meio frouxa
num riso de desdém.
-
Boas tarde Seu Rufino!
-Boa,
Coroné...
Rufino
fora pego de surpresa, e atrapalhado pelo mal estar que a visita lhe causava,
não sabia como proceder. De certo que àquela altura, a vinda do peste não podia
ser boa coisa. No descampado desnudo, não havia mais ninguém – só o silêncio do
sol a pino retorcendo a caatinga do sertão. A mão tremeu levemente, buscando
apoio no cabo da foice, o suor salgando-lhe a visão no perigo pressentido.
Bicho atento e magro, Rufino esperava. Os três homens em sua montaria fizeram
um cerco nervoso de tropel empoeirado à sua volta. Emboscada de morte assim tão
cedo? Nem mesmo esperariam o anoitecer, quando as sombras encobririam o
mistério cumulado? Rufino ponderou toscamente: a intuição perplexa, o
raciocínio confuso.
A
paisagem alargada repentinamente pela vontade de viver, a luxúria de respirar o
ar quente de sua pequena chácara, crescendo. A lavoura de feijão a seus pés,
regada à labuta e teimosia – desabrochando verde coragem. Tudo ali, havia
nascido de sua dor e alegria – um parto lento e abafado – fundindo Rufino à
terra, à água preciosa, e aos bichos que se arrastavam calorentos. De um
instante para o outro definitivamente amoldados num só elemento. E um novo
desejo estreitava-lhe o coração: sobreviver àquela tarde, fundir-se vivo,
envelhecido, no futuro adiante.
Os
olhos miúdos do Coroné na vigília de sua presa. Os cavalariços em seu balé
circundante e agreste que entontecia. O cheiro de sal nas narinas brutas do
jagunço avermelhado movendo o corpo à espreita da hora final. O outro – mulato
de um olho branco – com a cara fechada na atenção arquejante, o olho furado
medindo o chão para a cova apressada que cavaria daí a pouco.
Rufino
serenamente continuava à espera, a sensação turva e inquieta de que o jogo da
vida se extinguia. E ele mudo, erguido pelo vento a sustentá-lo, as calças
largas e rotas coladas ao ar. Pisando a terra com raiva, arrastado pela
correnteza de existir só mais uns segundos; as mãos sobre os olhos filtrando o
medo, pequenos movimentos indefesos.
Pena
não poder voltar a casa no fim da tarde, lavar o pescoço na camisa entreaberta;
olhar Zefa fritando os nacos de carne, derrubar farinha no prato e comer com
fúria. O hálito doce de Zefa na rede, o rosto enrugado da mãe tecendo fios
acocorada no casebre, as noites compridas de sono empedrado. Depois acordar
para um novo dia escarlate, a roça em brasa, as galinhas desarvoradas no
terreiro, o café ralo e doce... Tão bom viver! Tão grande o milagre dos limites
de seu próprio corpo que estremecia! O suor escorrendo-lhe nas costas empapando
as vestes, o gosto de pó nos lábios; tudo nele se prolongava e era feliz...
* * *
* * *
Fora um burro em não aquiescer à
ganância do Coroné, devia ter aceitado de bom grado a mísera quantia oferecida
pela compra de sua charneca, e continuaria vivo! Reconheceu a turra estúpida em
apegar-se a seu sonho, cavar o chão seco até o surgimento do lençol de água,
que ingenuamente alardeara aos quatro cantos. O coisa ruim, sabedor da
novidade, insistira em comprar-lhe as terras poucas, agora valiosas pela
descoberta da água.
Mas
ele resistira pobre e teimoso contra o poder do “Bode Velho”, alcunha do Coroné
em toda a redondeza. O praga ruim assuntara-o, insistira.Depois as ameaças e
sabotagens. Os outros lavradores aconselhando “larga a mão de teimá com o Homi
, antes que ele mande lhe matá”.
Naqueles
confins era a Lei antiga, o mais forte pisoteando o que quisesse, esmagando
quem não tinha tento, e ficava assim por isso mesmo...
-
Pirraça de Jegue! – condenou-se – Ninguém à vista pra me perder ou me achar.
Vou morrer bem morrido e nem mato vali ligar prá nada.
* * *
* * *
Um
véu de amargura fundiu-o em penumbra, os minutos largos de sua tristeza
aumentados por tudo que não ousara ser, e pelo que tinha sido em excesso. Cada galho
seco, cada punhado da terra, tudo era seu corpo e sua presença nesta hora,
pulsavam com força nele. Tanto amara aquela terra - além de si mesmo, crestada e
rachada como de foice. Ferira as mãos anos e anos a umedecê-la, a fazer dela
sua aliada, e tudo que nela crescia ou pousava eram sangue de um mesmo coração.
Rufino misturado a tudo, aos pássaros, às pedras, às folhagens parcas cobertas de
poeira. Aos lagartos furtivos, às secas e várzeas d’água, aos bichos, aos
bichos.
Aves
de arribação, cachorros secos e sarnentos, gado extraviado - costados ossudos em
busca de água. Corujas, burricos feridos, gatos do mato, tatus, gambás,
cabritos mambembes. Apareciam pelo
sítio, doentes, cegos, famintos – uma
vaga lucidez os
guiava para lá. Rufino piedoso, as mãos
calejadas e atentas, livrando-os dos bernes e das chagas, dividindo o pouco que
tinha com os pobres diabos. A mulher, incontida, ralhava:
--
Larga mão dessas bichada moribunda, homem de Deus! Mania besta de gastar-se com
esses nojos...
Rufino
obstinado afastava-se a contragosto:
--
Deixa eu cuida dos bichos, mulé! É tudo criação de Deus...
Desde
menino era assim. Deitava-se horas às margens do pequeno açude, debruçado sobre
suas águas verdes e lodosas, e lá vinham os náufragos – besouros, abelhas,
gafanhotos – recolhia-os sôfrego, enfileirava-os ao sol com extremo zelo,
sussurrava-lhes enternecido: ”Você tá vivo, já pode avoar... vai”...
Alguns sacudiam as finas asas e
partiam de imediato; outros se entregavam ao sol sem forças, na imobilidade da
exaustão. Rufino os vigiava arquejante, transferindo-os depois à frescura de
ramagens, onde repousassem sem quentura.
Abrigava
pássaros caídos dos ninhos, alimentando-os com pequenas porções de fubá e água,
empurrados goela abaixo por algum graveto. Protegia-os dos gatos esfomeados,
fazia dos dedos um trampolim seguro de pequena altura para ensiná-los a voar.
Depois os via partir livres, e seu peito magro de menino se enchia de uma
estranha onipotência. Deus dizia-lhes nessas ocasiões, que também Ele era assim
– cuidando dos homens e suas almas, para depois libertá-los, setas lançadas às
suas próprias possibilidades.
* * *
* * *
Uma
vez, na pobreza de sua infância, o pai ganhara a título de pagamento, dois
porquinhos sebentos e miúdos – recebidos com aclamada satisfação:
--
Vou criar e engordar eles, depois passo a faca. Vão dar um bom dinheiro –
dissera o pai.
Rufino
assustou-se, a revolta engasgada, mas até crescerem ainda ia tempo;
aquietou-se. Os leitões o seguiam a toda parte, a molecada imunda do roçado
troçava dele; o pai lascava-lhe a pernas em chibatadas:
--
Moleque atentado, lugar de porco é no cercado. Porco num é cachorro seu Besta!
Porco tem que ficar cingido prá engordar!
Uma
noite, Rufino acordou sufocado, o amanhecer se avizinhava, abandonou a esteira
de um sobressalto; então ouviu. Longe como um gemido de criança, insistente e
dolorido – os grunhidos terríveis que o assolariam para sempre. O pai matava o
porco pelas bandas do capinzal, levara o bicho para morrer distante, ciente de
que o menino o tentaria impedir. Rufino correu pela caatinga, os espinhos
rasgando-lhe as carnes, seus gritos se misturando aos guinchos frementes do
porco. No dia seguinte, Rufino como sonâmbulo – os olhos febris, o ódio mudo
buscando o pai, o pensamento numa idéia que salvasse o outro porco de
semelhante destino.
Quando
a noite desceu, esperou que todos dormissem, muniu-se de um cordel e deslizou
pelo pasto, o leitão enrodilhado na coleira improvisada, o acompanhando em
silêncio rápido – como se soubesse. Foi desta feita que Rufino foi-se embora, e
só retornou a casa, dois anos depois. O porco havia morrido de morte natural.
O
pai chamou-o de ingrato, deu-lhe uma sova doída para compensar o tempo em que
estivera fugido. Mas, a pedido da mulher deixou-o ficar. O menino estava
crescido, e precisava mesmo de uns bons braços na lavoura.
... Inteiriçada
sobre o campo, a vida se desembrulhava. Sob a tarde ígnea, os dias vividos se
debruçavam, e eram tantos a apinhá-lo! Os pardais raquíticos, flâmulas
gorjeantes em desolado canto; a gleba morrendo a morte de Rufino.
A
solidão imersa das lembranças, nem rastro deixaria. Desejou infinitamente a
comunhão com um ser vivo – partilhar seu último medo, debulhar seus olhos
mareados no reflexo de outros olhos, levar consigo o que ia em volta, o mato
ressequido, a água ruiva, as árvores brancas.
* * *
O
brilho da faca na mão do jagunço vermelho, os cavalos resfolegantes no círculo
ininterrupto trotando. O vulto do Coroné galgando zombeteiro, rodopiando feito
urubu.
Rufino
baixou os olhos, preparou-se – a dor antes do golpe era lancinante. Então,
sentiu-se olhado. Olhos grandes e calmos sobre ele, uma tímida carícia vinda das orbitas castanhas dos cavalos. Indiferentes as intenções sanguinárias
de seus montadores, os cavalos fitavam docemente o desamparo do lavrador e compreendiam.
Rufino
incrédulo piscando, a simbiose descortinada, a visão turva se refletindo nas
pupilas atreladas. E uma doida alegria devastou-o, os cavalos compreendiam, os
cavalos compreendiam, compreendiam!
Na
dança que girava a concórdia, sem palavras ou significados, os animais
relinchando, vitoriosos e imensos se livrando de seus fardos. O Coroné e os
jagunços lançados por terra. Os cavalos convergindo em circulo sobre eles,
erguendo as patas rudes em golpes mortais; num ritual frenético de movimentos
exatos.
créditos : TEXTO: Suian Moreira
foto 1 (sol em vermelho by kalu DaSilva)
foto 2 (os cavalos de goethe> E.Ei.Aun)