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sexta-feira, 31 de maio de 2013

CORINGA E O ARQUÉTIPO DO LOUCO



“Era através de suas palavras que se reconhecia a loucura do louco; elas eram o lugar onde se exercia a separação; mas não eram nunca recolhidas nem escutadas.” 
(Trecho do discurso de Michel Foucault na sua aula inaugural no Collège de France, 
pronunciada em 2 de dezembro de 1970.)


Coringa
Personagem de histórias em quadrinhos da DC Comics
Arte: Alex Horley
Joker (Piadista, na tradução), ou Coringa, é um dos principais e mais famosos vilões da HQ’s do Batman. O personagem sempre fez sucesso entre os leitores de HQ, mas caiu mesmo no gosto popular com a interpretação de Heath Ledger em The Dark Knight (2008). O longa dirigido por Christopher Nolan, nos apresenta uma leitura mais realista, psicótica e cruel do personagem. É tão real, que quase podemos nos ver no personagem, e talvez seja este o diferencial que atraiu a atenção do público nessa franquia. Por meio da projeção de nosso eu na personalidade doentia do palhaço, trazemos à tona características particulares até então negligenciadas. A conscientização dessas características tão nossas, ou que almejamos serem nossas, nos permite perceber aspectos desconhecidos de nossa própria personalidade, auxiliando no autoconhecimento.

Em realidade, a projeção acontece de forma tão contínua e inconsciente que costumamos não dar atenção de que ela está acontecendo. Não obstante, tais projeções são instrumentos úteis à conquista do autoconhecimento.
Não há consenso na história, e nem no surgimento do personagem do Coringa. Sua primeira aparição nos quadrinhos foi na revista Batman #1 de 1940. O personagem teria sido criado por Bill Finger (1914 - 1974) co-criador e roteirista do Batman. Finger teria se inspirado em uma foto de Conrad Veidt no filme "The Man Who Laughs" (1928).

O passado mais aceito, e popularmente mais citado vem da HQ A Piada Mortal editada por DC Comics em 1988. A edição especial traz um Coringa assombrado pelo seu passado, e disposto a provar a qualquer custo, que a loucura está ao alcance de todos os homens. Nas falas do próprio personagem: “A loucura é a saída de emergência” de nossa sanidade.


Nessa edição, nos vários flashbacks o Coringa aparece como o saqueador Capa Vermelha que na tentativa de dar uma vida melhor à esposa grávida, planeja assaltar a fábrica de cartas de baralho onde trabalhou. O vilão seria originalmente um engenheiro em uma fábrica de produtos químicos que, ao perder o emprego, tenta a vida, sem sucesso, como comediante. Enquanto planeja o assalto, ele é informado pela policia que sua esposa gravida morre em um acidente doméstico. Desolado, o vilão prossegue com a ideia do assalto, mas ainda sem muita experiência, acaba sendo flagrado no ato e, num rápido confronto com o Batman, cai no tonel de produtos químicos. Todos acreditam que Capa Vermelha teria morrido no incidente, mas ele reaparece saindo da água, já com a pele branca e cabelo verde, sendo o Coringa.

Contudo, essa teoria é desacreditada pelo próprio palhaço, quem em uma das falas afirma não ter certeza quanto ao seu passado, nem de como teria se tornado o coringa: “Se eu vou ter um passado, prefiro que seja de múltiplas escolhas.” (Coringa – A Piada Mortal - DC Comics, 1988, p 40).

A história incerta do Palhaço se confunde com a do arquétipo do Louco do Tarô de Marselha. Segundo Sallie Nichols, O Louco (em nossos tempos a carta do Coringa, outro símbolo utilizado pelo vilão tanto nas HQ’s quanto nos cinemas) é um andarilho, enérgico, ambíguo e imortal. Segundo o autor, o Coringa seria o mais poderoso de todos os Trunfos do Tarô. “Por não ter número fixo, está livre para viajar à vontade, perturbando, não raro, a ordem estabelecida com as suas travessuras” (NICHOLS, 1997, p.35).
 
[...] o Louco se acha em tão estreito contato com o seu lado instintivo que não precisa olhar para onde vai no sentido literal: sua natureza animal guia-lhe os passos. Em algumas cartas do Taro o Louco é retratado como se tivesse os olhos vendados, o que lhe enfatiza ainda mais a capacidade de agir antes por introvisão do que pela visão, utilizando a sabedoria intuitiva em lugar da lógica convencional. (NICHOLS, 1997, p.36).

Em A Piada Mortal, Coringa está determinado a mostrar ao herói que há um limite tênue entre sanidade e loucura, e que em muitos momentos a insanidade é o melhor conforto, um abrigo encontrado pelo homem. Batman parece ser um dos poucos que sempre entendem o real propósito de Coringa por trás de seus feitos lunáticos. 
 
Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular com o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância, não podendo testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato, não podendo nem mesmo, no sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo; pode ocorrer também, em contrapartida, que se lhe atribua por oposição a todas as outras, estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber. (Foucault, 1970, p.11).

Nos quadrinhos o personagem chama a atenção pela caraterização: pele branca, cabelos verdes, boca vermelha, terno roxo, sempre ostentado um sorriso sádico.

(Representações da Carta do Louco (Coringa) em baralhos antigos, Fonte: NICHOLS, 1997)


A roupa colorida do Louco é o símbolo por excelência da união de muitas espécies de opostos. Suas cores variegadas e o seu desenho fortuito parecem indicar um espírito discordante: no entanto, dentro daquele caos aparente, discerne-se um modelo. Dessa maneira, o Louco se apresenta como ponte entre o mundo caótico do inconsciente e o mundo ordenado da consciência. (NICHOLS, 1997, p.36).

O sorriso constante e cristalizado do vilão se tornou uma marca, e o que deveria ser cômico e gracioso, passa a ser, nas mãos do Coringa, aterrorizador.  Seja nas suas vestes de palhaço, com senso de humor doentio, ou nas suas armas bizarras.

É preciso dar destaque ainda para a habilidade de adaptação do palhaço que parece nunca morrer, mesmo depois de ser baleado, cair de prédios, etc. O vilão sempre reaparece depois de ser dado como morto em várias ocasiões.

À esquerda Jack Nicholson em Batman, 1989
e Heath Ledger em The Dark Knight, 2008 à direita
Segundo Seino (2011), temos na figura do Coringa a personificação do arquétipo do Embusteiro (Trickster – O Trapaceiro). Esse arquétipo pode ser tanto bom quanto mal. No caso do personagem Coringa, ele representa apenas os aspectos negativos deste arquétipo.

O arquétipo do Embusteiro ou do Louco é também encontrado na mitologia nórdica sob a figura de Loki, o deus anárquico que sempre está tramando contra os outros deuses, que também é o equivalente a Hermes da mitologia grega. Hermes é o deus grego astuto, com trânsito livre entre os mundos, portador da mensagem, está sempre pregando peças nos deuses do Olimpo. Hermes é também conhecido como Mercúrio no panteão romano, reconhecido também por sua volatilidade.

A presença e as ações do Coringa no filme desencadeiam a desordem, trazendo o terror e o caos à cena, e libera em cada um, sentimentos antagônicos e contraditórios. À medida que tais emoções afloram e se tornam conscientes permite-se uma melhor análise das potencialidades e conflitos das figuras do ego real e o ego ideal.
 
Nesse processo de assimilação, a consciência se amplia e se modifica. De modo paralelo, os processos inconscientes também se modificam. O que ocorre é uma verdadeira transformação da personalidade, o processo de individuação. (MAGALHÃES, 1984, p.146).

O final confuso de Batman: A Piada Mortal se dá com as gargalhadas trocadas entre o Homem Morcego e o Palhaço, após o Coringa contar a seguinte anedota:

- Tinham dois caras no hospício... Uma noite eles decidiram que não queriam mais viver lá... E resolveram escapar pra nunca mais voltar. Aí eles foram até a cobertura do lugar e viram, ao lado, o telhado de um outro prédio apontando pra lua... Apontando para a liberdade! Então um dos sujeitos saltou sem problemas para o outro telhado, mas o amigo dele se acovardou... É que ele tinha medo de cair. Aí, o primeiro cara teve uma ideia. Ele disse: - Ei! Eu estou com minha lanterna aqui. Vou acendê-la pelos vãos dos prédios e você atravessa sobre o facho de luz! Mas o outro sacudiu a cabeça e disse: - O que você acha que eu sou? Louco??? E se você apagar a luz quando eu estiver no meio do caminho?!" (A Piada Mortal - DC Comics, 1988, p. 48)

A imagem arquetípica do Louco e o personagem do Coringa parecem se confundir e se completar em vários aspectos. Em Batman, a imagem do vilão se sobrepõe à do herói, provocando fascínio e admiração dos telespectadores desejando o sucesso do Coringa ao final da trama e mudando a concepção de que é certo ou errado, do que é bom e mau, de loucura e normalidade. E mais uma vez o personagem cumpre o seu propósito, ao trazer luz às mentes obscuras, perverte o real significado das coisas.


Referências:
 
FONTE : "Psicoque ? Ajudando a Construir a Psicologia."