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quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

ALICE E EU




                                Alice foi a personagem mais selvagem, terna,  misteriosa e fascinante que  conheci.
                                Eu voltava de uma festa modernosa, oferecida por alguns artistas e intelectuais
do meu Curso de Artes - e o evento, realizado num jardim meio decadente, apresentou pessoas ,
idéias e performances tão surreais, que mais tarde, considerei o resto da noite, como um verdadeiro passeio ao País das Maravilhas. Ainda que mais obscuro e opressor.
                               Alice tinha mesmo tudo a ver com essa estranha noite.Mas isso, eu soube depois.   Agora era a Festa Profana, e um Circo Apocalíptico se desenrolava.
                                No palco improvisado por um Círculo de Tochas , um à um os convidados se apresentavam, como num Show de Talentos - onde o Bizarro e o Inimaginável, tomaram formas diversas :
                               Primeiro, uma Bailarina Gótica se apresentou dançando ao som de um Gato Robô (de onde veio aquilo meudeus ?). O Bicho emitia sons eletrônicos , enquanto a dançarina executava passos tortuosos e convulsivos.  A seguir, um homem careca, tatuado como um gibi e vestido com roupas militares, leu manifestos sobre a Civilização Moderna - enquanto soltava peidos e pombos. Isso mesmo amados : Peidos e Pombos...Fiquei  procurando um aparelho próximo que pudesse soltar os Peidos, mas não vi nenhuma máquina. Acho que ele mesmo peidava artísticamente para pontuar as frases mais pungentes do  discurso. Interpretação movida à Feijão e Repolho, pensei !
                             Depois, uma mulher oriental e nua, nascia de uma bacia cheia de água, enquanto imagens de um feto deformado eram exibidas em sua barriga. E ela apenas gemia e repetia : "a vida é feroz ! Nada faz sentido  ! O grotesco e o belo se enfrentam !"  .....
                            Sons de um violino sustinham notas agudas para sua interpretação alucinada, e a coisa do embrião monstruoso, foi demais para mim.
                            Esclareço já, amados : Sou uma pessoa da luz, curiosa, extravagante, mas não me alimento de nenhum tipo de matéria escura. Tipo assim : ligo a TV num dia ruim, e  começou uma reportagem , jornal ou filme onde jorra sangue, desgraça,  sofrimento , mudo imediatamente de canal .Vou assistir a Vida dos Ursos Polares : tudo branquinho, a neve refrescante, os ursinhos fofos...
                           Se começa a baixaria da mamãe ursa abandonando um filhorte doente, mudo de canal again.. É o estilo "jumper" para não desabar. E tem funcionado. Como diria Mestre YODA (de Guerra nas Estrelas) , não alimento o Lado Escuro da Força. E ponto final.
                             Então,  aproveitei a penumbra entre os espectadores do Festival dos Horrores,  e fui saindo devagarzinho,enquanto pensava :      
                             "Puta que pariu, só pinta maluco na minha tribo ! Quando derem por minha falta, vou dizer que passei mal e não me despedi para não atrapalhar as apresentações. Que Merda...Um frio desses e eu aqui neste fim de mundo, e ainda tendo que assistir ao fim do mundo... Foda !"
                             Saí me esqueirando pela cerca, tomei a estradinha que ia dar na Praça, e como estava sem carro, fui para o ponto de ônibus - àquela hora,  quase vazio. Grana para táxi, nem pensar.
Fim de mês e eu era "Freela" na època. Se o amigo não sabe, Freela significa free-lancer - aquela pessoa (geralmente com tendências alternativas e amigos malucos como acabamos de ver).  que não tem emprego fixo. Vive de trabalhos temporários e quase sempre é tão desprovido de grana quanto um mendigo ! No caso e no dia, eu !
                            Foi no " bus stop" que conheci Alice, pessoa mais querida e não menos bizarra que os "artistas" da reunião que eu abandonara há pouco.
                            Travesti de 1,80,  uma saia chamativa revelando pernas jovens.O rosto muito pintado, pousava sereno sob uma peruca loura à la Marilyn Monroe. Mas contrariando a imagem que o texto induz, a sua aparencia geral  era de sensata beleza  -  o rosto emitia confiança e dignidade.
                            Como converso até sòzinha, puxei logo um papo de informação sobre  ônibus e  horários, e como íamos na mesma direção, dividimos confidências e histórias durante a espera e o trajeto do ônibus.Para resumir, terminamos a noite - Eu e Alice, comendo sanduíches num trailler próximo à minha casa, após três horas de muitas risadas e afinidades.
                           Alice também saíra de uma festa ruim, em que o namorado havia terminado o relacionamento com ela - e segundo me contou anos depois, estava indo justamente pegar aquele ônibus para chegar próxima ao rio que cruza a cidade, onde pretendia se jogar .
                          Naquela noite, queria morrer, me disse. Não aguentava mais a rejeição da família, tinha perdido o emprego como Cabelereira e mais tarde, o bofe.. Negra noite, confessou.
                         Mas eu a havia distraído contando dos loucos que acabara de assistir na Festa dos Intelectuais, e tivemos uma inteiração imediata e divertidíssima.
                         Depois disso, tornamo-nos amigas, e o País das Maravilhas ficou pequeno para nós.
                         Alice é bem humorada, generosa , inquieta e meio louca. Exatamente como eu. É agora, a bem sucedida gerente de uma Clínica Estética.Eu também, mudei de ramo : sou Funcionária Pública, Supervisora de Artes da Biblioteca Municipal... De dia, somos gentis, usamos rabo de cavalo e blazer.
                         Á noite, enlouquecemos. Alice usa botas e piercing, eu ando de pijama preto e sapatilha bordada à mão :  bebemos licores fortes, ouvimos bandas punks,  pulamos de trens em movimento, alimentamos animais de rua e vez por outra fumamos com as putas. No entanto, a mais pura é Alice.
                         Sua vida e sua história, fazem os filmes de Almodóvar parecerem água com açucar, e os  rocks mais pesados viram canções de ninar, comparados ao seu ritmo . Mas é de longe, uma das melhores pessoas que conheci. Sensível, decente, estóica.
                         Hoje, ela está completando 34 anos  - e  porisso vim contar nossa história.
                         A história de uma amizade inusitada, mas profunda e verdadeira.
                         Salve  Sister !  Live Fast and Die Fast ! Love you...


                                                                                              (suian moreira)